António era um bebé, filho de Catharina Ignacia, mulher solteira da corte de Lisboa. Nasceu a 5 de outubro de 1807. Teve direito a parteira, a batismo, mas não a crescer junto da mãe. No dia seguinte foi deixado na roda da Santa Casa da Misericórdia para alguém lhe dar outra vida. Uma vida. A tapar-lhe o corpo, apenas um cueiro branco, de cambraia, e uma fita encarnada ao pescoço, com um Santo António de madeira e marfim, a identificá-lo. Daí o seu nome..António foi um dos muitos que ganharam vida ou um futuro a partir da roda da Santa Casa - a roda dos enjeitados ou dos expostos, como era conhecida a portinhola giratória no Largo da Misericórdia. Na altura, já escondia vidas marcadas pela pobreza, aventuras de uma noite, adultérios e tantas outras circunstâncias. Em Portugal, há registos de que a roda funciona desde 1498. Não só em Lisboa, mas também noutras zonas. A Santa Casa foi pioneira neste sistema e hoje é a maior detentora de sinais do mundo: ou seja, o registo da existência de António é um entre mais de 87 mil..De acordo com dados da própria instituição, no século XIX eram recebidas cerca de 2500 crianças por ano, a maioria vinda de contextos problemáticos, muitas sem qualquer sinal que os pudesse identificar, e muitas outras que não conseguiam sobreviver nos meses seguintes ao terem sido deixadas na roda dos enjeitados..Hoje, a Santa Casa continua a acolher crianças, todas já com a marca de uma vida em perigo, problemática, frágil, sem afeto, com uma marca de vida que qualquer criança ou jovem não deveria ter de passar. Mas para todas o desejo é o mesmo: um projeto de vida, nem que seja o regresso à família de onde foram retiradas..O relatório oficial de 2017 dá conta de que existem mais de dez mil crianças à guarda do Estado. Destas, 7553 estão em acolhimento, a grande maioria em instituições. O número é menor do que o do ano anterior, mas de 2018 ainda não há registo. Seja como for, este número será sempre excessivo, porque se fala da vida de crianças em perigo..Em entrevista ao DN, Isabel Pastor - jurista e mestre pela Faculdade de Direito de Lisboa, com mais de 30 anos de experiência nesta área social, desde os tempos de técnica na Segurança Social, a passagens por governos, até agora à direção da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa de Lisboa, instituição responsável por todos os processos neste âmbito na capital - fala desta realidade: os números, as expectativas das famílias, as rivalidades, as falhas no sistema, as medidas que têm de ter mais impacto, a falta de formação dos próprios magistrados..Das 7553 crianças e jovens em acolhimento em 2017, só 633 estavam para adoção, ou seja, só 10%. Porquê? Esta percentagem tem-se mantido constante, mesmo quando havia mais crianças institucionalizadas. Estes 10% correspondem ao número de crianças que estão em acolhimento institucional e que os técnicos responsáveis pela definição de projetos de vida de cada um consideraram estarem numa situação que justifica o seu encaminhamento para adoção, mas tal ainda está sujeito à chancela do tribunal, porque só pode ser adotado quem tiver uma decisão judicial de confiança com vista à adoção..Mas porque são tão poucos? A explicação é muito simples. Na maior parte dos casos, quase 90%, não estão em situação que justifique a sua adoção..Porquê? São crianças em que a sua situação de perigo não evidencia a quebra dos laços típicos da filiação - ou seja, com a sua família de origem ou com o meio natural de vida. Este, sim, é o motivo pelo qual se deve encaminhar para a adoção. São crianças que têm famílias, que têm pais que até podem estar a passar por dificuldades, mas que estão também a ser objeto de uma intervenção dos serviços do Estado, com vista à recuperação e à capacitação para virem a exercer uma parentalidade positiva. E o que acontece é que a maior parte dos casos de crianças e jovens em acolhimento estão nesta situação..É isso que justifica que 36% regressem à família de onde foram retiradas? Exatamente. E mesmo que o meio não seja o da família nuclear, que é um princípio fundamental, há sempre a prevalência do enquadramento da criança num conceito de família mais alargada, uns avós, uns tios, etc. O importante é que não se prive a criança de um laço afetivo que é estruturante para a sua personalidade. O laço de filiação, biológico e afetivo..Mas o tempo que se investe na manutenção deste laço e que a lei exige é também muito criticado até por alguns técnicos, magistrados e até por famílias que se candidatam ao acolhimento destas crianças e jovens. Como é que esta filosofia ainda está tão enraizada no sistema português? O laço com a família só deve ser cortado se já não existir efetivamente. E, aí, a criança já pode ser encaminhada para um outro projeto de vida. Por exemplo, podemos estar perante o caso de uma mãe ou de uns pais que estão em determinada altura da sua vida com dificuldade em exercer a maternidade ou a parentalidade - ou seja, em cuidar de forma correta de uma criança - mas que, no entanto, têm uma relação afetiva forte com ela, e isso é fundamental também para ela. Nestes casos, o que se deve fazer é auxiliar e proporcionar a esta mãe ou a estes pais as melhores condições para que exerçam a sua função..Esse tempo não pode ser demasiado para uma criança? Cortar um laço dizendo que "bom, a criança é pequena e será facilmente adotada" seria estar a satisfazer outros interesses que não os da criança. Há que ponderar e pesar o potencial de transformação, de recuperação e de capacitação de uma mãe ou de uns pais que apresentem alguma dificuldade. Antes de se tomar uma decisão tão radical, que é privá-los de serem mãe ou pais, temos de pensar na criança, que também sofre com uma situação de rutura, de separação dessa pessoa..Trabalha há mais de 20 anos nesta área. De acordo com a sua experiência, esta insistência não tem sido prejudicial nalguns casos em que é necessário definir um projeto de vida para a criança? Há aqui uma outra questão. O diagnóstico que tem de ser feito sobre a inexistência de potencial de recuperação de uma família que levará à medida de adotabilidade de uma criança tem de ser sancionado por um tribunal. E, aqui, entramos num esquema jurídico em que tudo tem de ser justificado para que um juiz possa aplicar efetivamente esta medida. Isto pode levar algum tempo. Ou seja, para que um juiz possa decidir com total segurança, o processo de investigação ou de provas pode levar mais tempo do que aquilo que seria desejável, mesmo tendo-se chegado já à conclusão de que esta criança deverá ir para a adoção..Untitled infographic Infogram."Por vezes, poderá haver um exagerar de intervenções junto de uma família".Mas é uma necessidade da lei ou a lentidão do sistema funcionar... A questão de dar cumprimento integral ao que a lei diz, e que são os requisitos para a adoção, pode levar mais tempo do que se imagina. Mas também há outra situação, e nesta estou de acordo consigo. Muitas vezes poderá haver um exagerar de intervenções junto de uma família. Pode dar-se o caso de não se estar a investir suficientemente no sentido de dar a esta família o apoio intensivo necessário e durante o tempo que é preciso. Mas quando se começa com os talvez, pode ser que, vamos esperar mais uns meses... o que acontece é que, ao fim disto tudo, pode chegar-se à conclusão de que o encaminhamento é para a adoção. Só que, entretanto, já se perdeu algum tempo, que é muito importante para criança e para o sucesso da sua adoção..Esse retardar ou insistência na intervenção na família parte só dos técnicos do Estado, ou também há situações em que os próprios magistrados insistem nesta perspetiva, contrariamente aos técnicos? Isso é o funcionamento do sistema. Os serviços de assessoria técnica aos tribunais têm de apresentar propostas de projeto de vida para uma criança ou jovem ao aplicador da lei, ao juiz, de acordo com o diagnóstico que fazem da situação. Ao juiz cabe um outro tipo de função, que é dentro do seu entendimento, e enquanto entidade decisora seguir ou não o parecer da entidade técnica. Mas também digo que, por vezes, há situações em que de facto há um excessivo investimento de intervenções em famílias, que já deram sinais de que será inútil. Aí, sim, perde-se tempo..Fala de que situações? Vou dar um exemplo muito concreto. Há situações em que já há um consentimento prévio para a adoção - esta é a medida em que os pais prestam o seu consentimento para a adoção, no momento do nascimento ou até antes, mas que só pode ser formalizada seis semanas após o parto. Ora, se já está dado o consentimento, porquê esperar ainda mais? É evidente que o projeto para esta criança será o da adoção, porque os próprios pais já o definiram. Isto deveria contribuir para que o sistema funcionasse mais rapidamente e que o processo de adoção corresse de forma muito mais natural, sem litigiosidade com a família de origem..Mas não é assim que funciona, mesmo nestes casos? Para estas situações, a lei atual prevê uma medida de confiança administrativa, em que não há a necessidade de uma decisão judicial para a adotabilidade ou de um processo de promoção ou de proteção para a criança. Porém, os tribunais, na maior parte dos casos, e como são eles que recebem o consentimento dos pais, persistem em verificar se o consentimento prestado foi com total conhecimento de causa, insistindo, não sei se por insegurança ou medo de que haja alguma dificuldade depois no processo de adoção, na abertura de um processo de promoção e proteção da criança, para constatar se houve mesmo quebra dos laços..São os atrasos do sistema a funcionar... Este atraso é importantíssimo para uma criança, que poderia ter sido encaminhada para a adoção com 2 meses, porque foi prestado o consentimento prévio às seis semanas de vida, mas que poderá ficar numa instituição seis, sete, oito meses ou até mais por força de um processo judicial, a aguardar um trânsito em julgado de que a medida de confiança administrativa não carece..Mas há cada vez menos casos de mães a dar os filhos para adoção antes ou no momento do parto... Não creio que haja uma diminuição, sempre foi um número residual. Na nossa realidade, a maior parte dos encaminhamentos para adoção não são com base no consentimento prévio. São com base na aplicação de uma medida de confiança a uma instituição com vista à futura adoção. O que há efetivamente é cada vez menos crianças a quem é aplicada a medida de adoção, mas isso pode ser um sinal de que temos melhores pais, de que temos menos situações de infelicidade, de rutura, de descontinuidade de abandono, o que poderá ser um bom sintoma da nossa sociedade..Acredita que é mesmo essa a razão pela qual tem vindo a diminuir nos últimos dez anos o número de crianças institucionalizadas? Também..Não tem que ver com o facto de não serem corretamente sinalizadas. Isso hoje já não acontece? Penso que não. Hoje temos um esquema de sinalização de perigo de diversas formas e por todas as instituições que fazem parte do sistema de proteção da criança. Penso que é muito difícil isso acontecer. Portanto, se não há tantas crianças para a adoção é porque na maior parte dos casos é possível resolver as fragilidades na família, apoiando os pais e a criança ou apoiando uma pessoa de referência da família, que deverá ser uma pessoa idónea, uma madrinha ou um padrinho, com quem a criança poderá ficar, o que faz com que diminua o número de crianças acolhidas e com situação de adotabilidade. Mas também diria que no futuro, o número de crianças com processo de promoção e de proteção também irá diminuir. Penso que haverá maior prevenção das situações risco.."A maior dificuldade na adoção já não é a idade da criança, mas a conceção da adoção".A maioria das crianças adotadas têm entre 0 e 6 anos. A partir daqui começa a ser difícil. A situação tem que ver com a imagem que os candidatos têm para um filho e do conceito do que é a própria a adoção? Há cada vez mais adoções de crianças mais crescidas, até porque também se verifica a aplicação da medida de adotabilidade às mais velhas. Mas a a pretensão dos candidatos até já vai para um perfil de criança que já não é o do 0 aos 3 anos, mas o do 0 aos 6 anos. Embora ainda haja candidatos, em número muito reduzido, que manifestam a sua pretensão e disponibilidade para adotar quem precise de ser adotado. Não dizem que querem adotar um bebé, uma menina, uma criança sem qualquer problema de saúde, estão disponíveis, de forma muito altruísta, a dar resposta a quem precise..Isso quer dizer que o perfil de candidatos tem vindo a mudar? Tem vindo a mudar. E diria que a grande mancha da preferência que é hoje manifestada é até aos 6 anos. As pessoas estão mais informadas sobre os vários ciclos de vida e já consideram que também há oportunidade de enquadrar e integrar a criança até à segunda infância..Qual é então a maior dificuldade num processo de adoção? Às vezes, a maior dificuldade não é tanto a idade da criança, mas sim a perspetiva que ainda se tem da adoção..Porquê? Porque ainda temos um sistema de adoção fechada. Isto significa que temos de apagar tudo o que está para trás na vida de uma criança, como se ela nascesse de novo numa nova família, com novos pais, etc. O nosso sistema tem a preocupação de que haja total cessação de contacto com a família de origem, que nada mais tenha que ver com o que se passou com os outros pais..E isso é prejudicial? Isto leva justamente a que os candidatos tenham mais dificuldade em aceitar crianças mais crescidas, porque são aquelas que têm muito presente as memórias e as referências da família passada..Esta perspetiva não pode ser alterada? A partir do momento que a legislação veio prever a possibilidade de manutenção de contactos, após a adoção e durante algum tempo depois com elementos da família biológica - pessoas de referência para a criança, como irmãos, quando são separados porque um tem um projeto de adoção e o outro não, ou simplesmente porque já não tem idade para ser adotado, ou porque são uma fratria de seis crianças, e é impossível que uma família os consiga integrar a todos -, deveria ser dada a possibilidade de manutenção desse contacto. Há mães e pais que não foram maltratantes, apenas tiveram, num determinado momento da sua vida, dificuldades e que aceitaram a adoção para o seu filho e que gostariam de manter esse contacto. Penso que até nos casos de consentimento prévio, em que a família consente na adoção como sendo o melhor para o seu filho, mas que gostaria de manter algum tipo de relação com a criança, isto deveria ser possível; não será prejudicial para a criança e já indicia uma mudança de mentalidade.."É preciso esbater a ideia de rivalidade entre famílias adotivas e biológicas".Quer dizer que se forem aplicadas medidas que aceitem estas situações que o processo de adoção será mais fácil? Os pais biológicos aceitarão mais facilmente a medida? Sem dúvida. Quanto mais se esbater a ideia de rivalidade e de litigiosidade entre as famílias biológicas e as famílias adotivas, mais probabilidade de sucesso têm as adoções e talvez seja mais fácil o encaminhamento de crianças para a adotabilidade. Até para as expectativas da criança esta situação é importante, assim não terá um percurso difícil de construção da sua própria identidade. O "quem sou eu? Sou filho de quem? O que marca a minha identidade? É a minha filiação biológica ou a adotiva? Posso integrar as duas?". Para isto acontecer tem de haver tolerância entre uns e outros. E temos de ter também famílias adotivas mais abertas para este tipo de relação e de contactos..Porque é que ainda não acontece? Porque ainda não está muito na mente dos aplicadores das medidas, tanto técnicos como magistrados. Por exemplo, há uma medida na legislação que é o apadrinhamento civil. É uma medida que pode trazer grandes alterações na perspetiva da parentalidade no futuro, porque estamos a falar de uma outra forma de integração familiar que não é a adoção. Porquê? Porque a adoção está muito ligada ao corte com a família anterior e o apadrinhamento civil não opera este corte e permite conciliar e aproximar a convivência desta parentalidade mais plural. Vai mais no sentido: todos somos de certa forma pais responsáveis por esta criança. É pena que esta medida não tenha a divulgação que merece..A sociedade não está preparada para esta mentalidade? É isso, mas penso que se está a amadurecer esta cultura de parentalidade diferente, concebendo a adoção de forma diferente e aceitando outras formas de integração familiar - esta mais na perspetiva de partilha de um ambiente, de um afeto, daquilo que se é capaz de fazer pelos outros e não só pela procura de um filho para mim..Mas a adoção é vista assim... A adoção tem a sua tradição. Começa por ser meramente egoísta - vai ao direito romano e à necessidade de eu ter um descendente, se não o tenho vou arranjá-lo, adotando, é pelo meu interesse -, mas hoje é uma forma de proteger uma criança. Ainda está associada às questões de infertilidade, que levam ainda muitos casais à procura de um filho pela adoção, embora já não seja a única resposta a esta situação, fruto do desenvolvimento científico e tecnológico. Portanto, penso que na adoção começa a nascer uma motivação mais centrada na partilha dos afetos, mais o espírito do que posso fazer por uma criança que precisa..Isso quer dizer que a adoção pode deixar de ser o projeto principal para uma criança institucionalizada? Pode. O apadrinhamento civil é uma hipótese. O princípio é o mesmo da adoção, proporcionar um ambiente familiar, seguro, afetivo, tranquilo e caloroso a uma criança, mas sem quebra de laços, mantendo a ligação a outras figuras de referência da criança, que podem ser os seus pais.."No futuro só haverá acolhimento familiar".O acolhimento familiar é uma medida muito utilizada noutros países. Em Portugal, não. Porquê? O acolhimento familiar não é projeto de vida para uma criança porque é sempre transitório. Está enquadrado no sistema de proteção da criança tal como o acolhimento residencial. É uma medida de passagem, de uma situação de perigo para uma outra que garanta à criança a sua permanência, que tanto pode ser o retorno à família como o encaminhamento para a adoção ou para o apadrinhamento civil. Mas o princípio é o mesmo, proporcionar ambiente familiar enquanto não há uma solução definitiva..Já lá vão dez anos e nada mudou... Há um caminho que tem estado a ser feito. A própria alteração legislativa na lei de proteção das crianças, em 2015, já veio mudar alguma coisa. O acolhimento residencial terá sempre de existir, haverá sempre determinadas situações em que uma criança terá de ser temporariamente acolhida numa residência, porque pode não haver nenhuma outra resposta, mas diria que no futuro, e à semelhança do que se passa na maior parte dos países, o acolhimento residencial será desmantelado e haverá apenas acolhimento familiar..Mas será sempre um acolhimento temporário... Tendencialmente será sempre temporário, mas poderá ser também de longa duração. Por exemplo, nos casos de crianças mais crescidas, o acolhimento familiar poderá ser até à maioridade e à transição para uma vida em autonomia. Mas os pressupostos do acolhimento familiar são justamente o retorno à família de origem ou o encaminhamento para outros enquadramentos familiares permanentes, como a adoção ou o apadrinhamento civil..Se está na lei, porque é que não é usado? Em Lisboa não há famílias de acolhimento. É uma medida muito residual, mas a Santa Casa de Lisboa está a desenvolver um programa de acolhimento familiar. Estamos a recrutar, a formar e a avaliar famílias que estão disponíveis para acolher crianças em situação de emergência. Neste momento, ainda não temos uma regulamentação do acolhimento familiar que permita dar determinados apoios a estas famílias, mas isso está a ser preparado. (O Ministério do Trabalho da Solidariedade e Segurança Social pôs hoje em discussão pública o projeto de regulamentação para famílias de acolhimento. Leia aqui a peça.).O acolhimento familiar é fundamental para as crianças mais novas? Os que mais precisam são os bebés no primeiro ano de vida, e se não há famílias acabam por ir para casas de acolhimento. Um bebé precisa de colo..Não há famílias disponíveis? Começa a haver. Mas ainda há muita confusão entre o que é acolhimento familiar e há ainda mitos sobre a capacidade das famílias e das crianças em se desligarem....O que há de diferente no acolhimento familiar? A motivação. Tem de haver uma motivação para acolher e não para adotar..Defende este modelo? Defendo um modelo de acolhimento em família. Parece-me o mais adaptado à nossa realidade, cultura e sociedade. Somos tradicionalmente calorosos e acolhedores. Mas defendo um acolhimento familiar assente numa prestação solidária, embora com uma compensação efetiva dos encargos financeiros e familiares acrescidos com uma criança, não uma retribuição como se de uma profissão se tratasse. Isto é uma perspetiva pessoal, porque considero que o amar e o cuidar não podem ser profissionalizados, não podem ter um preço. Não há um salário para um abraço, não há um salário para uma noite perdida, não há um salário para o colo. Portanto, defendo a compensação, sim, a formação também e a preparação das famílias para as funções que vão desempenhar, mas a motivação para tal não pode ser a retribuição do trabalho que vou prestar, designadamente com descontos, férias ou direito a horário de trabalho. Isto é incompatível com a própria ideia de acolhimento familiar..Disse que a Santa Casa já tem um projeto de formação de famílias de acolhimento. Com quantas famílias estão a trabalhar? O projeto já está no terreno, mas o processo é longo. O próprio processo de avaliação das famílias de acolhimento tem uma duração máxima de seis meses. Temos vindo a fazer um trabalho de divulgação da medida, até nas próprias formações para a adoção. Já há situações em que algumas famílias acharam que esta medida até era a mais adequada para elas. Neste momento, estamos a trabalhar com uma dezena de famílias, algumas já estudadas e outras em fase de estudo..Essa dezena de famílias poderá receber quantas crianças? Embora se diga que cada família pode receber duas crianças, e só mais se se reunirem particulares condições, o nosso projeto, e para fazer a diferença relativamente ao acolhimento residencial, não vai nesse sentido. Será uma criança por família, mas poderão ser duas, três ou quatro se forem irmãos..Qual o número ideal de famílias de acolhimento para dar resposta às crianças que precisam deste tipo de acolhimento? Sobretudo em Lisboa, que é a vossa área... O objetivo é conseguir em dez, 15 ou 20 anos que todas as crianças entre os 0 e os 6 anos, que precisem de ser acolhidas, o sejam em família. Não podemos avançar com números, mas tendo a ideia de que em Lisboa haverá necessidade de acolhimento, por ano, para cem crianças desta idade, teríamos de ter cem famílias disponíveis para o fazer, mas a meta será sempre a das necessidades das crianças. O nosso objetivo é criar uma bolsa de famílias de acolhimento, de preferência tão numerosa como a que temos para a adoção, para que possa, em todas as circunstâncias, dar resposta às necessidades das crianças institucionalizadas..Com esto tipo de acolhimento muitas instituições deixarão de existir? É difícil conceber que desapareçam totalmente, porque haverá sempre situações para as quais o acolhimento residencial será a resposta adequada. A lei diz que o juiz, ou quem tiver de decidir, terá de privilegiar as medidas de acolhimento familiar sobre o acolhimento residencial. Diz mesmo que deve fundamentar porque é que aplica o acolhimento residencial. Mas se pensarmos que a maior parte das casas de acolhimento já desenvolve outro tipo de funções, independentemente do acolhimento de crianças, haverá sempre uma possibilidade de reconversão, nomeadamente até no contexto de colaborar na capacitação dos pais das crianças que estão em acolhimento. Há uma série de outros recursos em que se poderão reconverter para responder às necessidades. Não esqueçamos que as instituições são criadas para servir as necessidades que existem, não vamos criar as necessidades para ajudar as instituições..Untitled infographic Infogram."É nos primeiros seis meses da adoção que surgem as maiores dificuldades".Há crianças que são adotadas e que são devolvidas. Porque é que isto acontece? Temos duas situações diferentes que são metidas no mesmo saco. Temos situações de crianças que tiveram a sua sentença de adoção e que integraram uma família como filhos, mas que voltam a entrar no sistema de proteção porque foram postas em perigo. Este perigo pode resultar de incompetência, maltrato ou negligência da família adotante, mas também de qualquer outra situação que nada teve que ver com a adoção..Estamos a falar de crianças que foram adotadas e que voltaram a entrar no sistema? Sim. Digamos que nestes casos houve uma rutura, ou seja, que a adoção falhou. A outra situação prende-se com crianças que ainda estão na fase de pré-adoção, de aproximação à família, que é observada pelos técnicos, e em que se pode chegar à conclusão de que não há aproximação possível entre aquelas pessoas e a criança e que a adoção não é efetivada. Aqui a criança não é devolvida. A adoção não se concretiza..Mas não há situações em que são os próprios candidatos à adoção que entregam as crianças? Há de tudo. A primeira fase da adoção tem a duração de seis meses. A criança vive com a nova família. E, normalmente, é neste período que surgem as principais dificuldades. E surgem porque as crianças na maior parte dos casos transportam com elas um passado de adversidade, de abandono, de mau trato, e isto vai repercutir-se no seu comportamento. De uma maneira geral, vão testar estes pais até ao limite, muitas delas não têm noção do que é uma família, noção do que é o cuidar de pais. Por outro lado, porque têm medo, medo do desconhecido, e porque não acreditam, porque pensam: será que estes me vão abandonar? Por tudo isto, é necessário que estes pais estejam bem preparados, porque falamos, por vezes, de comportamentos muito difíceis para um adulto entender. Há crianças que têm no seu passado histórias de vida muito dolorosas. Portanto, é preciso que estes pais estejam bem preparados e que sejam bem acompanhados, se não podem sentir que esgotaram, que afinal não são capazes e, aí sim, temos as chamadas devoluções: crianças que são devolvidas porque os pais manifestam "eu não sou capaz" ou "eu esgotei"..Quais são as razões que mais apresentam para devolver uma criança? É o cansaço e a descrença. Não acreditam que o comportamento inicial seja temporário, que seja uma fase. Mas isto está estudado. Na adoção temos a fase do enamoramento, que corre maravilhosamente, a criança corre para os pais, abraça-os, etc. Depois, começam os medos, as dúvidas e a fase de teste, com os tais comportamentos. Mas, normalmente, se há persistência, se os pais cumprirem as estratégias que lhes são dadas na ação de formação, que é especificamente orientada para lidar com comportamentos problemáticos, acaba por correr bem. Mas se o cansaço se apodera e a descrença também, os que pensam que nada mudar, que vai ser sempre assim, acabam por desistir..E numa situação destas é preferível a desistência à insistência? Depende. Eu costumo dizer que uma pré-adoção falhada transforma uma criança fácil numa criança de difícil adoção, porque vamos necessitar depois de famílias muito especiais, que consigam lidar com mais esta rutura e com mais uma nova descontinuidade na vida desta criança..O que leva a que um casal ou uma pessoa singular seja recusada no processo de adoção? Há critérios para uma avaliação que envolvem aspetos que vão desde a personalidade, a saúde, a situação familiar, a história de vida, o equilíbrio psicológico até à motivação. Por exemplo, quando a motivação está assente exclusivamente no candidato, isso pode ser um fator de risco, um mau prenúncio para uma adoção. Outro caso, pessoas que tiveram uma história de vida pesada e que não a resolveram podem transportar para a adoção todos esses fatores e terem dificuldade na criação de vínculos, de ligação à criança. Quando na avaliação - que é feita em colaboração com os candidatos, e que deve ser na perspetiva de que os técnicos não são avaliadores, mas uma equipa que os irá ajudar numa caminhada que levará a um determinado resultado - se começa a identificar estas situações, há que estar alerta e vai-se tentando que os próprios candidatos reflitam sobre essas dificuldades. Muitos nem são excluídos, eles próprios percebem que não é um projeto para eles..Quando há insucesso na adoção interrogam-se? Questionamo-nos. Pomo-nos em causa, porque houve alguma falha para que isso acontecesse. Se calhar houve algum fator de risco, um sinal, que não foi bem avaliado, mas não temos bolas de cristal... Por vezes, depois do insucesso é mais fácil identificar o fator de risco.."Havia a ideia de privilegiar a filiação biparental e não a monoparental".Portugal é dos países que permitem a adoção monoparental. Há candidatos? Está a crescer? Há países que ainda só admitem a adoção por casais, duas pessoas casadas e de sexo diferente, como Itália, por exemplo, mas em Portugal não é assim. Só que a iniciativa por parte de pessoas singulares para a adoção já foi muito menor. Também havia a ideia de que perante a situação de uma pessoa singular ou de um casal como candidatos seria mais fácil confiar um bebé, uma criança, ao casal. E não estou a falar de uma ideia que era partilhada só por técnicos da adoção, mas também por juízes, magistrados, etc. Havia muito a ideia de que a filiação privilegiada deveria ser a biparental e não a monoparental. Hoje está assegurada a total paridade das duas vias para a adoção. Há ainda mais casais como candidatos do que pessoas singulares, mas, nos últimos anos, tem havido um crescendo, o que corresponde também a um movimento geral sociológico quanto à parentalidade. Também já há muito mais famílias monoparentais pela via biológica. No entanto, na adoção, há alguns condicionalismos, no caso de uma fratria de três crianças não acho que uma pessoa sozinha tenha condições para distribuir afeto, atenção, cuidado por três crianças, todas vão exigir e rivalizar pelo seu lugar ao sol..Há critérios então... Há um critério de orientação. Fratrias de irmãos são distribuídas preferencialmente por casais. Mas ainda há mais casais a candidatar-se do que pessoas singulares. Todos os anos entram, em média, a nível nacional, 50 a 60 candidaturas novas à adoção. Teremos cerca de 200 e tal à espera, cerca de 60% biparentais e 40% monoparentais. Antes, estas eram tradicionalmente femininas, agora tem havido um aumento de candidaturas monoparentais masculinas..Em relação às famílias homossexuais, há um aumento de candidatos? Hoje há novas tecnologias de fertilização que são acessíveis a casais femininos, mas que não são para casais masculinos. Talvez por isso haja menos candidaturas por parte de casais homossexuais femininos.."A adoção internacional está em declínio em todos os países".Quanto à adoção internacional, os portugueses não têm muito o hábito de recorrer a este modelo? É verdade que já houve mais, mas também corresponde a um movimento a nível mundial. A adoção internacional está em declínio em todos os países. O grande boom da adoção internacional foi nos anos de 1980. A partir daí, tem diminuído. Era uma adoção que se fazia muito na Ásia e em África, mas ao longo destes anos este êxodo tem-se deslocado para outros países, mesmo assim está em declínio..Porque é que os portugueses nunca optaram muito por este tipo de adoção? Portugal nunca teve muito esta tendência porque na maior parte dos casos as pessoas que se candidatavam à adoção encontravam mais facilmente resposta na adoção nacional do que na internacional. O sistema de adoção internacional também vivia de uma certa capacidade organizativa que Portugal não estava em condições de oferecer. Por exemplo, França, Espanha, Itália e Holanda têm uma autoridade central para a adoção internacional, muito operante na articulação com os outros países estrangeiros - basta referir que no caso de França a autoridade para a adoção internacional está no Ministério dos Negócios Estrangeiros. E é no âmbito deste tipo de relacionamento que há uma grande aceitação de crianças da Ásia, sobretudo da China, que era de onde vinha a maioria das crianças para adoção, por parte destes países europeus. Em Portugal, procurou-se durante muito tempo fazer um acordo de cooperação de adoção com a China. Nunca foi possível porque a capacidade negocial - passo a expressão, mas é uma capacidade negocial por parte das autoridades - era limitada. O que é que poderíamos oferecer? Cinco a dez adoções por ano? O que era isto comparado com um país como a França ou os Estados Unidos, capazes de fazer milhares?.Mas houve períodos em que portugueses adotavam em África... Houve períodos em que havia adoção a partir de Cabo Verde. Houve mesmo alguma preocupação de estabelecer parcerias e contactos com os países que eram dos PALOP, invocando até uma afinidade com a língua e com a cultura, o que poderia ser facilitador, mas nunca isso aconteceu. São países que estão fechados à adoção internacional. Em Moçambique, por exemplo, nunca se conseguiu. Na Guiné também não, em Cabo Verde havia algumas possibilidades porque se tornou membro da Convenção de Haia.."Falta de formação dos magistrados leva à morosidade de processos".A morosidade dos processos é das maiores críticas nos processos de adoção. Esta realidade não pode ser alterada? Vou dar-lhe exemplos. A legislação espanhola prevê que o processo de uma criança em situação de adotabilidade quando, após uma intervenção junto da família, não foi possível obter resultados de recuperação ou capacitação durante um ano ou dois. Há a orientação que tem que ver com o tempo da criança e não com o tempo do adulto. É certo que quem faz esta avaliação pode dizer que, daqui por três anos, esta família poderá estar recuperada, só que estes três anos podem ser um dano irreparável para uma criança. São três anos em que a criança não está a ser cuidada por uma família. Esta medida do tempo para a criança pode ser facilitadora do processo, porque nos faz pensar se vale a pena continuar a persistir tendo em conta o interesse da criança. A formação é outra questão em que se deve pensar. Se houver maior formação especializada nos magistrados, porque muitas vezes este empatar do projeto, da aplicação da medida de adotabilidade, resulta da insuficiente preparação dos magistrados, sobretudo nas áreas que confluem ao nível da psicologia, do desenvolvimento da criança, da terapia familiar e do sistema familiar. Esta insuficiência leva muitas vezes a que haja uma aposta excessiva ou até abusiva nos direitos dos adultos, na aposta na recuperação das famílias, e não nos direitos das criança..Há insuficiente formação nos magistrados? A formação dos juristas para estas áreas é totalmente insuficiente. No meu tempo, e eu sou jurista, a cadeira de Direito da Família era um único capítulo. As questões gerais e toda a matéria jurídica estavam relacionadas com o casamento e com a questão dos regimes de bens. Portanto, todas as matérias relativas à filiação não eram tratadas. O próprio direito das crianças é algo que só recentemente está a ser considerado, era um capítulo do poder paternal. Era uma formação exclusivamente jurídica e sem a noção de que também é uma área tributária da psicologia, da sociologia, da antropologia e de outros conceitos. Hoje já há cursos de mestrado e de pós-graduação em direitos das crianças, mas antes não era assim. A nível dos magistrados, a formação que existe é contínua e feita sobretudo através de ações do CEJ [Centro de Estudos Judiciários], mas nem todos aderem a este tipo de formação. A própria rotação dos magistrados, que ora estão nos tribunais de família e menores ora nos criminais ou cíveis, também não lhes permite uma formação mais especializada. Isto deveria ser acautelado..É preciso então uma formação específica para quem está nos tribunais de família? Exatamente. E não só para a área da adoção, mas para todas as outras questões que têm que ver com a filiação e com os direitos das crianças..* Trabalho inserido numa investigação Especial - Crianças em Perigo, a ser publicado durante o mês de maio no Diário de Notícias