Ilusão da mobilidade fácil nos transportes de Lisboa

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Viajar nos transportes urbanos da Grande Lisboa não é tão mau como isso. Foi o que senti, a meio do dia, depois das agradáveis viagens pelos comboios da Margem Sul, Sintra e Azambuja. Comecei a mudar de ideias quando retornei, num cacilheiro velho e triste, à cidade grande e, definitivamente após vários percursos nos autocarros da Carris, concluí que há muito a fazer para tornar apelativas as ligações modulares, concertando horários e informações dos diferentes operadores.

Mal-grado a minha costela ambientalmente correcta, há mais de dez anos que não utilizo regularmente os transportes públicos. A favor da minha consciência ecológica, tenho apenas a utilização sistemática do metropolitano para a maioria das deslocações na cidade. E esse, para o DN, seria o desafio do dia que me era proposto: como é que um não utilizador diário observa os transportes urbanos de uma minimetrópole onde entram diariamente quase 1,5 milhões de pessoas.

Confesso que fiquei agradavelmente surpreendida em muitas situações que descobri: estações novas e limpas, ligações céleres, tempos de espera diminutos. Mas constatei, ao longo do dia, que são meras ilusões quando se tem horários a cumprir e tarefas a fazer. Imaginei-me a sair de casa, levar o bebé ao infantário, o miúdo à escola e a chegar ao trabalho. As ligações entre operadores falham, por atrasos ou falta de articulação, os percursos nem sempre são os mais rápidos ou os desejáveis e há casos absolutamente obtusos de falta de ligações, aparentemente essenciais, como a inexistência de um autocarro da estação CP do Cacém para o centro da Amadora ou da estação de Coina para o Barreiro.

Fico impressionada com o tamanho do comboio que, parado, quase entra pelo Túnel do Rossio, às dez da manhã. Contrasta com o vazio de lugares no interior das carruagens. Pago 1.30€ por uma cartão Lisboa Viva e uma viagem quase desacompanhada de utentes até ao Cacém.

Pela janela, acompanho a pressão construtiva junto à via-férrea. Prédios e obras quase permanentes. Pode ser a influência de um dia chuvoso, mas sinto a tristeza dos lugares. Noto a falta de espaços de harmonia lá fora, onde as raras áreas verdes parecem devoradas pelo betão.

Já no Cacém, registo a primeira contrariedade num percurso sem rumo, quando percebo que não há ligação rodoviária para o centro da Amadora. Com o meu camarada repórter fotográfico, regressamos de comboio a Sete Rios, com o intuito de apanhar o comboio para a Outra Margem.

O comboio das 11.13 chega com dois minutos de atraso e, a meio da manhã, ainda há muita gente no cais da estação do Cacém, onde faz frio e chove impiedosamente.

A carruagem onde entro vai mais composta de gente. É um convívio de silêncios, abstracções generalizadas ou conversas circunscritas a pares. O telemóvel, constato, tornou-se o companheiro das viagens solitárias. Não vejo ninguém a ler um livro ou jornal que seja. Nem gratuitos. Ao invés, a rapariga que se sentou ao meu lado passou a viagem a mandar mensagens, num frenesim a dedilhar teclas no telemóvel. Pelo canto do olho, observo-lhe a espera a olhar para o aparelho, aguardando a resposta do receptor longínquo.

A azáfama comunicativa estanca-se quando, na estação da Damaia, entra uma amiga. As duas raparigas encetam então uma conversa audível até meio do comboio, num misto de crioulo e português. A minha percepção 'rouba-lhes' uma "gravidez de risco" e a aventura de uma ida "ao ginásio", cujos pormenores se perdem num código de que não conheço a chave.

São 11.40 e apeamo-nos em Sete Rios, dando por nós a olhar como "boi para palácio" para a grelha indicativa do percurso do comboio e as articulações com outros meios de transporte. São 14 paragens até Setúbal, com a travessia ferroviária do Tejo de permeio. Entre os 4.05€ da viagem para Setúbal e os 2.45€ para Coina, optei pela segunda.

O comboio acabou de chegar e se corrermos ainda o apanhamos. É um luxo não o fazer e arrisco a uma espera de 20 minutos, numa estação nova, mas fria, e por onde entra vento e chuva. O comboio ocupa uma das extremidades do comprido cais, onde são vários os pontos de acesso. Sem outra informação, ponho-me a pensar como fará uma pessoa de mobilidade reduzida que tenha o azar de ficar na ponta errada. O comboio espera?

Apesar de consideráveis melhorias, ainda se notam extraordinários exemplos de indiferença. Lembro-me que uma familiar, com prótese na anca, tem de viajar acompanhada nos comboios da Linha do Norte porque o cais da estação de Vale de Figueira (Santarém) fica muito baixo em relação ao degrau do comboio. Só a segurança de mão amiga a convence a deslocar-se.

Música ambiente, carruagens climatizadas e limpas, informação regular mesmo dentro dos comboios são aspectos de conforto que notamos na Fertagus. Só a ausência de casas de banho nas carruagens diminui uma avaliação francamente positiva. Em 20 minutos, fazemos o percurso Sete Rios/Coina, com passagem pela Ponte 25 de Abril. O termómetro indica 15 graus lá fora e, lá em baixo, o rio acinzentado faz-nos adivinhar o vento.

Ao contrário do que sucede na margem norte do Tejo, a sul, a pressão urbanística ainda vai dando alguma folga. Junto às estações ferroviárias, os parques de estacionamento estão lotados. E na estação de Coina há vários veículos bloqueados, por se encontrarem fora do estacionamento autorizado.

O comboio, de resto, deixou-nos num lugar pouco mais que ermo. Ali, só existe a estação, os táxis e um denominado interface com os autocarros das rodoviárias. Por azar, o percurso que tinha delineado - seguir para a estação fluvial do Barreiro - era impossível, por não haver autocarros directos. "Quando muito para o hipermercado", explicou-me a funcionária da bilheteira. Em nenhuma estação encontrámos qualquer mapa da Grande Lisboa, com indicações para os vários meios de transporte possíveis. Para quem não sabe, é o caos. Por isso, sem indicações fiáveis, optei por regressar de comboio a Corroios e dali apanhar o Metro Sul do Tejo, para a estação fluvial de Cacilhas. Se o objectivo fosse Setúbal, teria de esperar uma hora pelo comboio. Entre a decisão e a chegada a Corroios, demorei 15 minutos.

No interface com o Metro, Transportes do Sul esperamos três minutos. Passo pela odisseia do carregamento do Lisboa Viva, pago os 0,85€ pela viagem e antevejo as 12 paragens que me separam de Cacilhas. Na Cova da Piedade, o metro de superfície que atravessa vários aglomerados urbanos, faz uma bifurcação para o Pragal. A presença de estudantes é uma constante neste metropolitano moderno e amigo do ambiente, um transporte que circula por um corredor eléctrico exclusivo.

Às 14.45, as pessoas ainda se acotovelam na estação fluvial de Cacilhas. Esperamos 20 minutos pelo barco que nos há-de devolver a Lisboa. O cacilheiro é velho, barulhento, cheira a gasóleo e os bancos são desconfortáveis. Vejo um extintor, os letreiros a interditar fumar e nenhuma indicação de salva-vidas. Só à saída, em outro compartimento do navio, observarei a sinaléctica indicando que os coletes estão debaixo dos bancos, trancados a cadeado. Os ferrolhos parecem ser uma característica na Transtejo, uma vez que as casas de banho têm acesso condicionado. Um letreiro avisa que para fazer uso daqueles serviços devemos pedir a chave a um marinheiro, profissional que só se deixa ver durante as operações de atracagem.

São 15 horas e a média das deslocações não está mal. Em Lisboa, no Cais do Sodré, percebi que não estive fora tempo suficiente para sentir saudade.

Mais uma vez não conseguimos carregar o Lisboa Viva e lá foram mais 50 cêntimos por cada cartão novo. Decidimos ir de metropolitano até ao Colégio Militar e dali a ideia era seguir para a Estrela, a bordo de um autocarro da Carris. Da Linha Verde do metro, passei sem grandes contratempos para a Linha Azul na estação da Baixa-Chiado. Só tive de subir e depois descer as escadas de acesso a um cais apinhado de gente, revelando a importância daquela ligação. A viagem é rápida.

No interface do Colégio Militar, à beira de uma catedral do consumo, por onde passam diariamente milhares de pessoas, as ligações modulares não correspondem. A funcionária do posto da Carris manda-me ir para junto do Fonte Nova, quase dois quilómetros à frente, para apanhar um autocarro para o centro da cidade e dali para a Estrela.

O vento e a chuva desmotivam a caminhada. Decido atravessar a estrada e consultar os percursos dos autocarros da paragem. E escolho o 64, com destino à Cidade Universitária. O trânsito é intenso na Estrada da Luz, como em outras zonas da cidade. Muitas paragens, travagens constantes, trepidação, piso irregular e confusão de percursos. Para impedir qualquer tentativa de orientação, no interior dos autocarros não há informação que nos permita saber onde estamos e para onde vamos.

No final da linha, dei-me conta do erro de maçarica nestas andanças urbanas: o destino cidade universitária, ficava, afinal, junto à cantina da Universidade, no extremo oposto do Campo Grande.

Depois de uma travessia apeada pela Alameda, chegámos esbaforidos ao primeiro autocarro que se encontrava parado na lateral do Campo Grande. Entrámos sem ver o número e lá dentro também nada nos indicou para onde íamos. Por sorte, seguimos pela Avenida da República e saímos no Saldanha. Já no 44, que nos trouxe aos Restauradores, experimentamos pela primeira vez o contacto físico e a dureza de viajarmos seguros nas pegas do tecto, completamente impossibilitados de cair, devido ao apoio alheio dos anónimos companheiros de viagem.

Eram 17.30. Ainda quisemos experimentar subir uma das colinas de Lisboa nessa resistente pérola da cidade: o eléctrico 28. E para cumprir esse desejo, usámos esse maravilhoso meio de transporte: as nossas pernas que nos conduziram à paragem da Rua da Conceição, perto da Praça do Comércio. A reportagem terminou na Baixa- -Chiado e eu fui de transporte público para casa, onde cheguei mais moidinha que a farinha depois de conhecer a mó.|

Intimista Quando se viaja sozinho, as viagens pendulares permitem um tempo de interiorização. Mas são também espaço de conversas e partilhas íntmas. Sinal dos tempos, o telemóvel tomou o lugar do livro e do jornal e tornou-se o companheiro preferido da amizade à distância

Conforto A qualidade das travessias fluviais do Tejo deixa muito a desejar. Os cacilheiros fazem parte do património das gentes das duas margens e são indispensáveis, mas precisam de atenção

Eléctrico È o meio de transporte perfeito para descobrir, com tempo, o coração de Lisboa. Uma volta pelas colinas de Lisboa, no 28, é sempre obrigatória quando nos queremos apaziguar das fúrias da cidade

Futuro O metro de superfície, a sul do Tejo, é o feliz exemplo de um meio de transporte rápido, barato, acessível e ambientalmente correcto

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