ideia que me pareceu não só oportuna, mas até algo sábia

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Sábado, 3 de Setembro

Na quarta-feira fomos à pesca, eu, o Rogério e o Fernando. Chegámos era quase de noite, pescámos um monte de peixe-porco e viemos para casa como se não tivéssemos pescado nada.

Na véspera, eu tinha-me posto a verificar os instrumentos. Já não ia à pesca desde os primeiros tempos, em que ia ao chicharro com o Márcio. A cana de carreto continuava nova e havia destorcedores, chumbadas e um aparelho de corrico ainda por abrir.

Os anzóis estavam todos podres.

Fui ao Zeferino, ao Flores & Parreira e ao Tomás de Borba, troquei duas piadas futebolísticas em cada um deles e reforcei-me de apetrechos: um balde novo e várias caixinhas herméticas, uma cana de mão, anzóis de diferentes vocações, uma lanterna para a cabeça e um canivete lindo, com cabo em osso, que me fez lembrar aquele que o meu avô trazia no bolso.

Todos os estabelecimentos me fizeram um desconto. Considerei bom augúrio.

Na quarta descemos ao Cais da Figueirinha e, assim que deixámos cair os anzóis, apareceram os peixes-porco. Também havia palmeiros, com as suas riscas azuis, mas não mordiam. Experimentámos mudar para o chicharro, só que o chicharro ainda não entrou. Oscilámos várias vezes entre os carretos e as canas de mão. Usámos bóias. Nenhum palmeiro pegou: apanhámos uma coça ou duas, os sapos do costume e baldes inteiros peixe-porco.

Um pescador vizinho ensinou ao Rogério um processo melhor de amanhá-los e o Rogério foi adiantando o assunto. No fim, o vizinho ficou de tal modo enjoado de peixe-porco, que abdicou de todo o que ele próprio tinha apanhado, obrigando-nos a voltar para casa com mais peixe-porco ainda.

Quer dizer: o peixe-porco até numa beata de cigarro pega. Que vantagem subsistiria naquela pescaria toda, se não tinha havido luta ou conquista?

Derrotado, pus o meu quinhão em vinha-d"alhos, com um vinho branco azedo que me pareceu vagamente promissor, e perguntei-me como iria explicar à Catarina que íamos fritar peixe em casa. Os meus pais estavam de regresso das férias no continente e os dela de partida das férias nos Açores: já que íamos reunir a família num churrasco, uns filetes de peixe-porco eram capaz de ser boa entrada.

Aliás, eu até podia grelhá-los, acrescentei, ideia que me pareceu não só oportuna, mas até algo sábia.

No dia, que foi ontem, a chuva caiu às malhas. Sequei os almofadões em volta da braseira e choveu-lhes em cima de novo. Lavei a mesa do jardim e voltou a sujar-se. Repeti as operações, mas era evidente que já não haveria churrasco.

Desalentado, meti o peixe-porco no forno, contra todos os conselhos que o previam a ressequir, liguei para a Churrex a encomendar uns frangos e pus a rádio na Dinner Jazz Excursion, a ver o que salvava da festa.

Toda a noite lamentei a minha sorte. O frango arrefeceu e o queijo não era bom. Até os meus sobrinhos se desinteressaram dos marshmallows: levei-os para o jardim, insistindo que era giro comer marshmallows à chuva, mas a boa vontade deles não durou.

Houve uns quantos elogios ao peixe-porco, sim. Mas eram os elogios da praxe. E, de qualquer modo, peixe-porco não é pesca - até numa beata pega.

Senti-me triste, e, quando os meus pais anunciaram o regresso a casa, ainda não era meia-noite, pareceu-me natural. Talvez ainda pudesse sentar-me no sofá, a ver o resto do Shetland. Até que o meu pai, com um ar guloso que não eu lhe saberia agradecer, decidiu salvar-me o dia:

- Olha, o que é que vais fazer com o resto do peixe-porco? Era capaz de levar uns para o almoço.

E foi assim que, aos 42 anos, e depois de uns 30 a viver segundo a máxima "Se a vida te oferecer limões, faz omoletes", eu aprendi a lição definitiva: se a vida te oferecer peixe-porco, faz peixe-porco no forno.

Terça-feira, 6 de Setembro

O salão estava cheio e as palavras do maestro Festa foram de amor à terra. Nem me lembrei de pedir que alguém tirasse fotografias: sentei-me ao canto da primeira fila, envergonhado por não ter acrescentado uma gravata ao fato, e tentei sobretudo levantar-me direito quando me chamassem.

Quase me esquecia de mostrar os diplomas à assembleia. Lembrei-me sobretudo dos meus avós, dos meus tios, dos meus mortos, e depois recebi um abraço da minha mãe, a primeira a levantar-se.

E agora podia estar aqui a perorar isto ou aquilo. Mas, para lá das exegeses e das próprias emoções, é realmente significativo quando a primeira vez que uma coisa destas nos ocorre vem daqueles que nos viram de cueiros.

O que aconteceu ontem à noite na igreja da Terra Chã, por iniciativa da Junta de Freguesia, diz muito mais sobre este lugar do que sobre mim. A gratidão é minha: pelo gesto e pela sorte de ter nascido daqui.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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