"I believe in America"

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Para a Julia Michaels

Para quem se imaginara a viver em Manhattan, Jersey City era o lugar onde os sonhos iam morrer. A cidade era feia e ferrugenta, não exibia o resplendor ou as possibilidades que os filmes me garantiam existir em Nova Iorque. Eu tinha chegado um mês após os ataques do 11 de Setembro, depois de muitas piadas de amigos portugueses sobre a minha fisionomia de magrebino - "Não é uma boa altura para te mudares para os Estados Unidos" -, e acabara a viver a poucos quarteirões da casa onde tinham morado os terroristas do primeiro ataque ao World Trade Center, em 1993.

Por baixo de mim vivia uma senhora negra, com idade para ser minha avó, nascida no Sul do país, que um dia me contou como, ainda criança, uma mulher branca lhe cuspira na cara. Depois trabalhei num restaurante e conheci a saga da imigração a salto dos sul-americanos da cozinha: o que fora roubado pela polícia, o que chegara descalço e com os pés destruídos porque os sapatos se tinham desfeito no deserto, o que disse que a sua primeira memória dos EUA eram as placas da estrada, porque viajara deitado, numa carrinha, esmagado entre outros imigrantes, do Arizona até Nova Iorque.

A minha primeira América não era branca, WASP, não havia desembarcado com os peregrinos. Tive uma namorada israelita, trabalhei com brasileiros, um nepalês, um gay de Viseu, dava-me com espanhóis, argentinos e servia copos a um traficante dominicano. Frequentava um bar que cumpria a tradição, de várias décadas, de só empregar chineses na cozinha - o mesmo bar, junto ao rio, onde iam os portugueses que, em tempos, tinham vivido no SoHo, bairro onde ainda há uma igreja com os três pastorinhos e missa em português.

O meu primeiro contacto com a América verdadeiramente branca aconteceu quando fui convidado para passar o dia de Ação de Graças com a família de Peggy, que vivera em Portugal parte da adolescência. Numa casa com relvado, sem cerca, em Long Island, enquanto o peru assava e ela deglutia vodkas, com o marido na sala e os três filhos a brincar na rua, Peggy contou-me que se ia mudar para Lisboa porque ainda estava apaixonada pelo toureiro que conhecera, aos 15 anos, em Cascais. Peggy devia ter uns 40, o toureiro ia avançado nos 50 e, nas fotografias que ela mostrou, tinha patilha grossa e traje de tourear a cavalo.

À medida que Peggy bebia, o marido revelava-se o tipo mais obsequioso e simpático que eu jamais vira a trinchar um peru. Mas parecia que nada do que ele fazia tinha a aprovação de Peggy. O marido abria a boca e ela ridicularizava-o. "És um bêbedo", disse-lhe, diante das crianças. Quando fui ajudá-la na cozinha, Peggy informou: "Vou para Portugal daqui a uns meses e levo o meu filho mais novo."

Onde estava a minha América idealizada do Rocky Balboa, do Hemingway - "grace under pressure" -, onde estava a minha Mrs. Robinson ou Rapsody in Blue a tocar numa vitrola, com Manhattan ao fundo e a preto e branco? Onde estava o conceito literário "americana", sobre o qual tinha lido em revistas e livros - a quintessência do que é americano, um romance de Roth, Sinatra a tocar na jukebox, tarte de maçã, um diner de Hopper a meio da noite, Joe Lewis no ringue, Lauren Bacall a assobiar para Bogart, Billie Holyday a chorar o Strange Fruit, Tony Soprano queixando-se do seu tempo: "Hoje, toda a gente tem psicólogos e fala dos seus problemas. O que é feito do Gary Cooper? O tipo silencioso e forte? Ele, sim, era americano."

A América, afinal, também estava naquela família de Long Island.

Umas semanas mais tarde, Peggy convidou-me para ver um musical, a fim de conhecer o toureiro, que estava de visita. Pensei no marido e nos filhos que, em breve, seriam separados; além disso, nunca gostei de musicais. Mas como podia deixar de conhecer um toureiro, que queria ouvir canções de Elton John, 25 anos depois de ter seduzido uma adolescente na Costa do Sol? O toureiro tinha modos de capataz e a sua misoginia e má edução não eram inteiramente captadas por Peggy. Ela via um cavaleiro lusitano. Ele via a loira enxuta que ia comer num fim de semana em Nova Iorque. Ela cedeu, ele saiu em ombros. E, regressado a Portugal, nunca mais atendeu o telefone.

Em Nova Iorque, confesso que não foi apenas a diferença - o tecido da identidade americana - aquilo que mais me deslumbrou, mas a quantidade de histórias e de protagonistas, a impressão de que tudo está contaminado pela ficção e pelo talento do story telling. Há quem procure o sonho americano de ser livre, rico ou famoso. Eu só queria histórias para viver e depois contar: sobre uma família branca de Long Island, a minha vizinha negra ou os hispânicos da cozinha, afinal, tudo tão essencialmente americano como Bonasera, o imigrante italiano, no enorme ecrã do cinema, dando garantias a Don Vito Corleone da sua fé naquela terra: "I believe in America."

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