Leitores que têm acompanhado os meus escritores não ignoram que sou divergente da taxonomia dominante acerca dos géneros jornalísticos no que respeita a onde colocar crónica. Entendo que aquilo que escrevo nesta coluna e o que vejo nas páginas em redor não são crónicas, são artigos de opinião, análises ou comentários. Chamar-lhes crónicas é uma importação afrancesada, porque para lá dos Pirenéus resolveram chamar chronique aos artigos de autores que cronicamente apareciam nas páginas dos jornais, isto é, regularmente..Mas crónica, na nossa melhor tradição, que remonta a Fernão Lopes, não se insere no quadro da opinião mas no do relato: apesar de ser uma interpretação e uma narrativa muito pessoalizada, a crónica tem de relatar alguma coisa de um passado recente, um jogo de futebol, uma tourada, uma sessão parlamentar, uma viagem. Este é o território da crónica que eu hoje vou tentar palmilhar para, de caminho, justificar aos leitores a minha ausência nas edições dos dois últimos sábados..Fui a Bruxelas, correspondendo a um desafio de um amigo que foi meu camarada de armas há quarenta anos na base aérea das Lajes, nos Açores, José Frederico Soares. O motivo da deslocação contá-lo-ei adiante..A minha companheira de uma eternidade tem vindo, perante a insaciável necessidade de Gaspar, a aguçar o engenho para encontrar voos a preços comportáveis. Desta vez escolheu a TAP, numa modalidade de ida a uma quinta-feira e regresso na quinta-feira seguinte. Não fomos em low cost (ou pensávamos nós) porque nos dava jeito levar mala de porão e nesses voos em que só falta viajar de pé agarrado a uma argola presa ao teto tudo conta como extra, pelo que nunca fica pelo preço chamariz..Para lá fomos bem, com refeição quente, vinho e café. Mas não nos tínhamos dado conta de que havia um alçapão: era um voo em "aliança" com uma companhia belga, a Brussels Airlines. Para cá, se quiséssemos a refeição, era preciso pagar, peça a peça. A chefe de cabina explicou amavelmente que essas eram as condições da companhia e que a TAP nos deveria ter informado disso. Sugeriu que reclamássemos junto da transportadora (ainda) portuguesa. Ná! Prefiro contá-lo aos leitores e confiar no passa-palavra para que, de futuro, se abeirem do balcão com um potente farol de mineiro na testa, bem apontado aos olhos de quem vende os bilhetes e façam um interrogatório cerrado sobre as condições em que vão viajar. Ora aqui está um serviço que acabo de prestar ao leitor....(Só tenho medo de que no final haja mais esta: que, quando for pagar, a conta apareça em dobro, porque "cliente prevenido vale por dois"... Nunca fiar nesta gente!).Vamos ao que é mais importante. A razão da deslocação a Bruxelas era o lançamento do livro de um português que triunfou lá fora. Chama-se Lino Pires, fez viçosos oitenta anos no dia do lançamento do livro, 21 de maio, e venceu na vida em Inglaterra..Que tem Bruxelas a ver com isto? É que o Zé Frederico Soares tem uma grande pancada por automóveis. Não estão a perceber nada? Então aí vai: o Zé Frederico é tradutor português no Conselho Europeu desde 1984. Vive, pois, em Bruxelas. E adora carros. Jaguares, de preferência..Um dia, em 2003, recebeu o convite da Jaguar belga para visitar a fábrica inglesa, para os lados de Coventry. Alambazou-se de pistões e bobinas, platinados e pastilhas, trepou árvores de cames - o meu vocabulário automobilístico parou num Peugeot 403 de 1959, nos Açores, que é que querem? - e concluiu a visita na livraria da fábrica. Um livro sobressaiu no meio daquelas apologias aos papa-léguas roncadores: Fantastic! The Extraordinary Life of Lino Pires. Ainda leu mentalmente "Laino", mas estacou no Pires..Atraiu-o primeiro o facto de ser um quase conterrâneo: Zé Frederico e Lino são do distrito de Castelo Branco. Mas impressionou-o sobremaneira a subida a pulso desde um lugar perdido no concelho de Oleiros, Vinha, onde Lino foi a primeira criança a alfabetizar-se por empenho próprio e, em seguida, o percurso que culmina com a aquisição e desenvolvimento de um restaurante de grande fama, The Butcher"s Arms, onde todos os famosos do automobilismo poisaram e decerto quebraram as mais elementares regras de frugalidade e abstenção tão propagandeadas. Stirling Moss diz-vos alguma coisa? E Jack Brabham? Jackie Stewart, Damon Hill, David Coulthard, Colin McRae, Carlos Sainz, Hannu Mikkola? E Derek Bell, cinco vezes vencedor de Le Mans? Tudo visita lá daquela casa! E também por lá se viram políticos famosos - John Profumo, John Major, o Lorde Michael Heseltine, só para amostra -, artistas, enfim, Lino é conhecidíssimo em Inglaterra. Não por cá..Por culpa minha..Ou porque dou azar, ou porque não tenho jeitinho nenhum para lidar com o mundo da edição..Dá-se o caso que o Zé Frederico, de tão entusiasmado, se pôs em contacto com o Lino, em quem descobriu a mesma fixação pelos automóveis. Ao menino que nasceu para calcorrear à pata os montes e vales da Beira Baixa e aguentar com as inconveniências do gado, deu-lhe para se deleitar com o flato tremendo das octanas carburadas. E a pista de Silverstone fica ali perto de Priors Hardwick, Warwickshire, onde está o restaurante - daí a presença constante dos aceleras. E a fábrica da Jaguar também está a dois passos - por isso o livro no escaparate..(E é tão gentil a relação da fábrica com Lino que, quando souberam que vinha a Bruxelas para ser homenageado, lhe puseram à disposição um cinco-litros-vê-oito e eu iria jurar que vi o gigantesco Jaguar do Zé Frederico dobrar-se nas rodas da frente, em respeitosa vénia diante do colosso que chegava, apre!).O Zé Frederico empreendeu que haveria de pôr o livro em português, para deleite dos compatriotas: traduziu-o, adaptou-o - e teve a má ideia de mo enviar a pedir opinião. Deslumbrei-me e corri às poucas editoras que conheço. Só encontrei narizes torcidos, ou melhor, empinados: acho que lhes cheirou a valise en carton. É o país que temos, provinciano por dentro: chama crónica ao que não é, só porque no estrangeiro se diz assim - mas rejeita-se a crónica que é o relato de um compatriota que triunfou..Dei conta do meu desconseguimento ao Zé Frederico. Mas ele é de boa têmpera, ateimou, ateimou, olhou para o lado e viu o Joaquim Pinto da Silva, do Porto, que com ele tinha entrado no mesmo dia, ou quase, no Conselho Europeu. O Joaquim tem uma livraria luso-galaica em Bruxelas, chamada Orfeu. Edita também livros e promove muitas iniciativas. Aceitou de boa vontade publicar o livro. No dia do lançamento, a livraria ficou cheia. O encarregado de negócios de Portugal, João Terenas, na vagatura do lugar de embaixador, fez questão de comparecer. Um jornalista dos antigos mostrou que mantém o faro para a notícia: Fernando de Sousa, antigo correspondente do DN em Bruxelas e meu companheiro de tantos anos, marcou presença..Lino Pires estava radiante. Veio acompanhado do único filho, Peter - que também foi atingido, em pequeno, pela convergência de uma cambota e um rolo da massa, o que o fez expedito na restauração e doido por automóveis. Peter trouxe a mulher, Helen, cujo heroísmo familiar Lino conta no livro. Só fez falta a Augusta, sua companheira desde 1957, falecida há cinco anos..Agora vai ser mais conhecido em Portugal. Mas ainda não pelo livro, que terá lançamentos em Lisboa, Porto e Castelo Branco. Lino Pires não é só reconhecido em Inglaterra pelos seus méritos comerciais na restauração - e se ele é um comerciante! Aqueles olhinhos continuam a coruscar em busca infatigável de negócio. Mas Inglaterra conhece-o também pela sua filantropia: não são poucas as associações e instituições que lhe estão gratas pela ajuda que lhes prestou e pela angariação de fundos que proporcionou..A coisa chegou aos ouvidos da Casa Real, que há dois anos iniciou o processo secreto e cuidadoso de o selecionar para a Honour"s List que foi divulgada a 1 de janeiro, como é da tradição..Na próxima quinta-feira, dia 6, no Palácio de Buckingham, Lino Pires receberá das mãos de Isabel II a Medalha do Império Britânico. E há de levar o emblema do seu Butcher"s Arms, que entrelaça as bandeiras de Portugal e de Inglaterra..Por mim, fiz o gosto ao dedo e dei uma notícia em forma de crónica. Espero que alguém a continue na quinta-feira. Ao serviço de suas majestades, os leitores.