Histórias religiosas, de Nova Iorque a Benguela

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Diz-me o The New York Times que há elevadores em Nova Iorque que esperam de portas abertas e param em todos os andares. Na cidade dos arranha-céus, pode ser demorada uma ida ao 64.º andar. A boa notícia é que isso só acontece entre o entardecer de sexta-feira e o pôr do Sol de sábado, durante o Sabat, dia interdito de muita coisa para alguns judeus ortodoxos - em alguns prédios dessa e de outras cidades americanas e argentinas, e sobretudo em Israel, a norma é essa norma. E, entre as proibições, está o carregar no botão do elevador.

Há antigas 39 proibições para o dia santo, quase todas relacionadas com a agricultura, como semear ou debulhar, atividades próprias de tempos anteriores à escrita da Torá. Os elevadores vieram muito depois, em 1851, quando o americano Elisha Otis descobriu a forma de um cabo partir e a plataforma que ele segurava não cair. O elevador estava inventado e, por arrasto, tornou viável a existência de prédios de mais de cinco andares. Subir e descer tornou-se rápido, até que rabis mais meticulosos decidiram recordar as prescrições 36.ª e 37.ª dos trabalhos proibidos no Shabat, as que interditam «acender o fogo» e «apagar o fogo», palavras antigas aplicadas a coisas mais modernas como acender números elétricos numa caixa que sobe e desce.

Dir-me-ão: e porque não usar o rapaz do elevador? É uma instituição tão americana que até criou lendas: conta-se que Joseph Kennedy, o pai do outro, desfez-se a tempo da sua carteira bolsista, em 1929, quando ouviu falar do rapaz do elevador que recebia gorjetas em ações... Mas o rapaz do elevador pode salvar fortunas, não almas. Está proibido pelos rabis que um crente judeu indique o seu andar a um não crente (se o rapaz do elevador trabalha no Sabat não é obviamente um judeu piedoso). Uma possível alternativa é o judeu saltar para um elevador aproveitando a boleia de um vizinho - se ficar abaixo, será sempre mais próximo do seu andar, se ficar acima, só terá de descer.

Esta última circunstância, apanhar boleia de um goy (não judeu), assemelha-se a uma aposta. Em Hong Kong vi os elevadores a fazer de casinos. Nos impressionantes átrios dos arranha-céus do Centro Financeiro há grupos que esperam pela chegada dos elevadores. Não, não vão entrar, estão ali para ver sair. Apostam. Se número par, ganham uns, se número ímpar, ganham outros. Há também o seu quê de religioso nessa espera.

As crenças das pessoas são díspares. Um dia, em 1977, estando eu a fazer de sacerdote dessa «trincheira firme do socialismo» que era Angola, cheguei à Baía Farta, a sul de Benguela, com a palavra do Senhor, que era o ministro das Pescas. Os meus livros sagrados eram coloridos, azuis para cada saída de traineiras, cor de rosa para quilos de garoupas e peixe do fundo, e verdes para peixes maninhos - eu ia ensinar a arte nova da burocracia aos homens do mar. Sou cumpridor mas não sou tolo e cedo reparei na distração com que me ouviam sob o telheiro de seca, na praia. Finda a minha homilia, o pescador de rugas mais fundas levantou o braço. Olhou para as folhas coloridas que eu lhe tinha distribuído, fingiu ler com cuidado e falou: «Camarada, diz só, no qual quadrinho vou pôr quando a traineira sem gente começa a piscar luzes no meio da baía?» Fez pausa e mudou de cor de papel: «E quando o telhado levanta sozinho e vai pousar na areia, onde ponho mesmo a cruz?»

Ele não estava a inventar, ele tinha visto aqueles feitiços acontecer; não acreditava era nos meus. Evidentemente que o ouvi com atenção e prometi tomar providências. Não sou sectário, geralmente aceito as crenças e interditos dos outros. Nunca me esquecerei de que foi uma vontade religiosa que me deu um dos meus pratos preferidos, a carne de porco à alentejana. Que esta tenha sido inventada na região portuguesa com mais raízes judaicas e muçulmanas - com amêijoas e porco proibidos - só me garante que o interdito de uns pode apaladar outros.

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