«Yo, Jesus é a solução» é uma das frases com que Mc Manifesto aquece o público antes da entrada da batida. À partida, o uso do habitual calão do hip hop num contexto religioso pode parecer deslocado. Mas a «onda» que se sente na Aula Magna, cheia a dois terços, redefine todos os conceitos de compatibilidade. Na plateia, o cenário é surpreendente, tendo em conta que se podem ver senhoras com aspecto de avós a improvisarem a sua visão de dança hip hop, crianças aos pulos em sintonia com a música e senhores de meia-idade sem saberem muito bem o que fazer ao corpo..A prova ao vivo de que o rap não é exclusivo de quem usa calças largas e boné de basebol. A ocasião para presenciar esta rara confluência de tribos deu pelo nome de «Muda de Vida», um evento organizado em conjunto por quatro igrejas evangélicas de Lisboa. Em palco estiveram três rappers cristãos de microfone em riste: Deepson, Manifesto e Dany Boy, três vozes de uma nova geração pregadoras da mensagem de Cristo..Dany Boy, nome artístico de Daniel Santos, é um jovem de 22 anos que se converteu recentemente à fé. Já andava nos meandros do hip hop e não era estranho às rimas de teor cristão. «Embora não aceitasse a mensagem, sempre a respeitei», até à hora em que a vida lhe tirou o tapete debaixo dos pés com a morte da mãe. «O rap foi um refúgio para a minha dor, mas também foi o que me chamou para Cristo», confessa Daniel. É razão para dizer que «se a música alimenta a alma, o hip hop cristão alimenta muito mais». Daí a começar a escrever rimas de inspiração divina foi um pequeno passo, algo que «faz muito mais sentido» para Daniel..O rap tem sido um dos mais relevantes modos de expressão urbana, com acentuado cariz marginal. Uma cultura de rua que protesta e intervém apontando o dedo às falhas da sociedade, algumas provenientes do próprio movimento. Para Dany, o hip hop cristão, além de chamar a atenção para algo errado, aponta uma solução clara. «Cristo é a salvação», afirma inequivocamente. .Este é um dos denominadores comuns dos rappers cristãos, a ideia da redenção lírica, das suas rimas serem o caminho para a bem-aventurança dos ouvintes. Roney Lemes, conhecido como Mc Redil na cena hip hop, também afina pelo mesmo divino diapasão. O jovem de 19 anos quando sobe ao palco dá prioridade à mensagem. «Não é minha intenção pôr ninguém aos pulos. Podem fazê-lo, mas o essencial é que as letras sejam ouvidas», esclarece. Passar a palavra é-lhe tão fundamental que chegou a recusar subir ao palco «por sentir que não estava a levar uma vida correcta», tornando-se assim «indigno de passar a mensagem»..Roney também é rigoroso no momento da criação, ou seja, antes de escrever analisa-se para ver se está bem. O mesmo grau de exigência mantém-se no que toca a ir para o estúdio e gravar, por isso há três anos que trabalha no seu álbum. O rapaz da Tapada das Mêrces quer «lançar um disco com muita qualidade». É a via que o hip hop cristão percorre para sair do anonimato e entrar no circuito comercial..O que nos leva ao projecto Sukata Laboratório, nascido na Zona J do bairro lisboeta de Chelas com o intuito de levar a mensagem do rap divino a todo o país. «Queremos ajudar os rappers cristãos em produção de imagem, vídeo, gravação musical, publicação de álbuns. No fundo, pretendemos dar-lhe visibilidade e qualidade, senão ninguém ouve.» Quem o diz é Diogo Borges, mais conhecido por Manifesto enquanto produtor, mc (mestre-de-crimónias) e um dos rostos da Sukata. O nome do projecto partiu da ideia de reciclagem, mais concretamente dando uma nova vida a velhos discos de vinil como material para construção de beats. O conceito Sukata Laboratório também passa por pegar nesta máxima e elevá-la ao expoente espiritual. «Queremos reciclar a imagem que se tem de Cristo com uma nova abordagem, num contexto actual», explica Manifesto..Porém, nem só de rimas vive o hip hop. O graffiti é outra das facetas desta cultura, ou modo de vida como alguns lhe chamam. Marcos Pereira, também conhecido por Deepson, além de parceiro de microfone de Dany Boy e Manifesto, tem um fascínio de longa data por latas de spray de tinta e muros limpos. Desde que se converteu não expõe muito o seu trabalho, mas antes era «um vândalo e pintava em todo o lado». Hoje em dia pinta muito em igrejas e escolas, mas já equaciona voltar às ruas «com novas mensagens bíblicas em graffiti, a riscar um pouco o ilegal», confessa Marcos. Porém, o projecto levanta-lhe algumas dúvidas. O dilema prende-se com o facto de se ter «convertido para marcar a diferença» no campo dos princípios..«Se andar a vandalizar estarei a meter-me no mesmo saco de quem consome drogas ou anda no crime e isso não são exemplos para ninguém.» No entanto, Marcos está feliz e não tem dúvida de que o seu trabalho evoluiu desde que encontrou Cristo. .Crime e castigoHoje em dia, o hip hop cristão tenta sair da sua zona de conforto e chegar a um público descrente. Nem sempre se viveu o actual clima de abertura das igrejas evangélicas para com o estilo musical. «Hoje estão mais receptivos, mesmo em campanhas de evangelização, principalmente em bairros sociais, mas no início sofremos alguma censura por associarem o rap ao crime e ao consumo de drogas», explica Manifesto..«Há uma parte da igreja que não entende porque não é sensível ao hip hop», explica Álvaro Ladeira, um jovem pastor adjunto da Assembleia de Deus de Benfica. Apesar da resistência à mudança dentro das igrejas evangélicas, o pastor admite que há uma disposição para «sacrificar formatos antigos, que são desadequados nos dias de hoje, e optar por algo desconfortável mas que seja eficaz». .A desconfiança de quem não está familiarizado com o hip hop vem de longe, principalmente a partir do momento em que a música começou a ser o espelho das guerras de gangs americanos. O chamado gangsta rap atingiu enorme sucesso comercial, apesar de celebrar o tráfico de droga, o materialismo, os tiroteios, a homofobia e a misoginia. Artistas como Ice-T, Dr Dre, Snoop Dogg são alguns exemplos de rappers que construíram autênticos impérios a partir da música, mas acabaram por limpar os seus nomes em películas hollywoodescas e na televisão..A questão torna-se incontornável. Como é que alguém alia princípios cristãos ao consumo deste tipo de mensagem? Marcos simplesmente corta «o que não constrói nada de positivo» e apenas ouve esse hip hop como pesquisa depois de filtrada a parte que não interessa. Já Manifesto considera as mensagens negativas como divergências. «Quando vives o cristianismo, se ouves algo que vai contra aquilo em que acreditas é normal que te incomode», aprofunda o rapper..Para Roney, as rimas que glorificam o crime são uma ofensa à filosofia bíblica e ao hip hop. Apesar disso ouve, mas a única coisa que guarda é a questão musical, e não tem a mínima dúvida de que «daria muito melhor uso aos beats de Dr Dre» e afins. .Evangelizar com rimasA ostentação de riqueza também se tornou um must nos vídeos de artistas de hip hop e um modo de afirmação, de poder. O imaginário do rapper bem-sucedido ficou repleto de imagens de enormes «cachuchos» de diamantes, grossos fios de ouro cravados de pedras preciosas, o luxo dos carros com jantes também de ouro. Tendência que chegou a um novo patamar quando o rapper e produtor Kanye West publicou no Twitter uma foto do seu sorriso de um milhão de dólares. O músico substituiu a dentição inferior por diamantes e ouro. Quando questionado porque fez tal coisa, West limitou-se a dizer que «os diamantes são muito mais fixes»..Este grau de vaidade é algo completamente contrário ao cristianismo. Roney, por exemplo, sonha com o sucesso e a possibilidade de poder contribuir com lucros da música para causas de solidariedade. Claro que se pelo caminho o hip hop lhe der uma vida confortável, um bom carro e uma casa espaçosa, não recusará. «Deus não quer nem pior nem suficiente para mim. A própria Bíblia diz que se quiserdes e me ouvirdes, comereis o melhor desta terra», explica com um sorriso. Mas a prioridade é fazer chegar a mensagem ao maior número de pessoas possível..O potencial evangelizador do rap cristão não passa despercebido às igrejas evangélicas portuguesas. Álvaro Ladeira, além de ser fã do estilo musical, vê-o como uma oportunidade, um veículo. «Na sociedade há tribos onde Cristo ainda não chegou, então temos de falar a língua deles para nos fazermos entender», explica o pastor adjunto. Além do objectivo de dar a conhecer a religião, o jovem pastor admite que já viu o hip hop operar autênticos milagres, nomeadamente em intervenções junto de comunidades suburbanas arrasadas pelo narcotráfico..Com um objectivo tão transcendente como a salvação de almas, onde fica a linha que separa um pastor de um rapper com tendência evangélica? Para Álvaro Ladeira, a «diferença é que o rapper sabe rimar melhor». Mas quando se sente inspirado, o pastor arrisca mesmo «lançar umas rimas nas pregações». É um raro exemplo de um pastor com flow..Realidade americanaO hip hop cristão nasceu nos Estados Unidos da América e tem vindo a crescer desde a década de 1990. Na sociedade americana, onde a influência da fé cristã protestante é muito forte, a ideia de musicar as preces a Deus é comum. Assim surgiu o gospel, que passou da igreja para os escaparates da indústria discográfica através de vozes como a de Aretha Franklin, Al Green ou até mesmo Elvis Presley, que, apesar de mais tarde enveredar por um caminho musical mais profano, começou a cantar na igreja..Este fenómeno da música cristã tem uma dimensão à americana, move milhões de dólares e pessoas. Os apreciadores das várias vertentes de música cristã podem sintonizar a GMC (Gospel Music Channel), que é uma espécie de MTV evangélica, e assistir aos Dove Awards, o equivalente aos Grammys da música cristã. Para quem aprecia a comunhão festivaleira livre de pecado, há mais de 25 festivais de música cristã por onde escolher, de costa a costa dos EUA, todos os verões. Uma realidade em nada comparável com a nossa.