'Habemus' polémica e a culpa é do Clooney do Vaticano

O antigo secretário privado de Bento XVI publicou as suas memórias dias depois da morte do papa emérito. Foi ainda revelado que o cardeal Pell foi o autor de um texto anónimo que apelidava de "catástrofe" o pontificado de Francisco.
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A morte de um papa costuma ser de união para a Igreja Católica, que não só tem que fazer o luto pelo anterior líder, como eleger um novo. Depois de sair o fumo branco da chaminé da Capela Sistina, o cardeal protodiácono vai à janela da praça de São Pedro para anunciar "Habemus papam" e dizer o nome do escolhido. A morte de um papa emérito, está a descobrir o Papa Francisco, que foi o primeiro em seis séculos a ter que conviver com o antecessor, pode colocar o foco nas divisões que existem dentro da Igreja. Habemus polémicas.

Mal tinha acabado o funeral de Bento XVI, que renunciou há quase uma década e morreu no último dia de 2022, quando chegaram a várias redações as primeiras cópias do livro de memórias do homem que por 20 anos foi o seu secretário privado. Nient"altro che la verità. La mia vita al fianco di Benedetto XVI ("Nada mais do que a verdade. A minha vida ao lado de Bento XVI") é o título da obra do arcebispo alemão Georg Gänswein (escrito a meias com o jornalista Saverio Gaeta, diretor do semanário Famiglia Cristiana).

"Hoje, após a morte do papa emérito, chegou a hora de o atual prefeito da Casa Pontifícia contar a sua própria verdade sobre as calúnias flagrantes e manobras obscuras que tentaram, em vão, lançar sombras sobre o magistério e as ações do pontífice alemão", prometia o comunicado de imprensa da editora Piemme sobre o livro, de 336 páginas, posto à venda na passada quinta-feira. Mas o que também fica claro é o mal-estar de Gänswein por ter sido posto de lado por Francisco.

O livro inclui relatos de conversas privadas com ambos os papas, englobando desde a ascensão de Bento XVI ao cargo mais alto da Igreja - terá feito campanha "ao contrário", tentando dissuadir os apoiantes de votarem nele - até aos anos após a renúncia. Gänswein teria tentado persuadi-lo a ficar, mas percebeu rapidamente que a decisão estava tomada e isso era "totalmente fútil".

Apelidado pela imprensa internacional de "Gorgeous [deslumbrante] Georg" ou "o George Clooney do Vaticano", o arcebispo alemão que tem hoje 66 anos foi durante duas décadas a sombra de Bento XVI. Tendo começado a trabalhar ainda como secretário privado do cardeal Joseph Ratzinger, que seria eleito papa em 2005, especulou-se que a sua influência foi crescendo à medida que Bento XVI ia envelhecendo - ele era responsável pela agenda do papa emérito, comunicados e audiências.

O papa emérito tinha prometido ficar em segundo plano, mas Francisco encorajou-o a não viver "em reclusão completa". Em várias ocasiões as suas intervenções públicas acabaram por revelar o choque de ideologias entre o teólogo conservador alemão e o liberal argentino. Um exemplo, o fim da missa tradicional em Latim, que Bento XVI considerou "um erro". Em público, os dois procuraram sempre calar as ideias de que havia um conflito entre eles, com Gänswein a revelar que o papa emérito ficava triste pelas tentativas de exagerar as diferenças entre ambos.

No livro, o arcebispo escreve que o problema nunca foi a coexistência entre os dois papas - algo que ocorreu pela primeira vez em seis séculos, depois de Bento XVI ter renunciado em fevereiro de 2013. O problema foi "o nascimento e o desenvolvimento de dois grupos de partidários, porque com o tempo tornou-se claro que há duas visões distintas para a Igreja." Assim, de um lado, havia uma visão mais conservadora da Igreja, a dos "seguidores" de Bento XVI, frente à visão mais liberal do Papa Francisco. "E esses dois grupos criaram uma tensão que foi repetida por outros que desconheciam a dinâmica eclesiástica", lê-se no livro.

Um dos piores momentos na relação entre os dois papas terá sido com a publicação do livro do cardeal Robert Sarah, em que Bento XVI aparecia como coautor quando, segundo Gänswein, tinha concordado ser apenas conselheiro. O livro defendia a ideia do celibato dos padres, quando Francisco parecia ter aberto a porta à discussão do casamento dos padres, no Sínodo da Amazónia em 2019. O livro foi visto como um ataque ao Papa.

Foi pouco depois que Gänswein foi afastado do cargo de prefeito da Casa Pontifícia (o departamento responsável pelas audiências e cerimónias papais), para o qual tinha sido nomeado por Bento XVI meses antes da renúncia. O momento em que foi "despedido" por Francisco foi contado no livro: "Ele olhou para mim de forma séria e, para minha surpresa, disse: "A partir de agora, fica em casa. Fica com o Bento, que precisa de ti, e protege-o". Fiquei chocado e sem palavras. Quando tentei responder, ele acabou a conversa com "Vais continuar a ser prefeito, mas não voltes para trabalhar amanhã"".

Quando o arcebispo relatou o ocorrido a Bento XVI, este terá tido: "Parece que o Papa Francisco já não confia em mim e quer que sejas o meu guardião." O papa emérito terá tentado que ele mudasse de ideias, sem sucesso. Gänswein diz que enquanto secretário privado de Bento XVI carrega "a marca de Caim" e não poderá fazer nada para afastar a ideia que existe de que é "muito extrema-direita". Ainda assim, se ficar no Vaticano, poderá tornar-se numa espécie de porta-voz da linha mais conservadora dentro da Igreja.

Francisco, que no passado defendeu que a coscuvilhice era "uma praga pior do que a covid-19", disse no Angelus de dia 8 que "a tagarelice é uma arma letal: mata, mata o amor, mata a sociedade, mata a fraternidade". Alguns leram um recado para Gänswein, que recebeu um dia depois em audiência privada. Sobre o encontro, nada de oficial foi revelado - o Corriere della Sera disse que Gänswein terá dito ao ser questionado sobre o encontro: "Agora devo calar-me"; segundo o Die Zeit ele terá que sair do mosteiro onde vivia com Bento XVI. O seu futuro não é claro, tal como o do próprio Papa, havendo quem acredite que ele também poderá renunciar ao cargo, agora que o papa emérito morreu.

Como se um golpe não fosse suficiente contra Francisco, foi revelado que o autor de um texto anónimo publicado no ano passado - que descrevia o papado de Francisco como uma "catástrofe" - foi o cardeal australiano George Pell (que morreu na semana passada). A revelação foi feita pelo jornalista Sandro Magister, responsável pelo portal Settimo Cielo .

Pell, que foi acusado e ilibado de pedofilia, assinou o memorando com o pseudónimo de Demos (povo, em grego), onde incluía um capítulo sobre o próximo conclave. Nele escrevia que o Colégio Cardinalício "foi enfraquecido com nomeações excêntricas", defendendo que "a primeira tarefa do novo papa será restaurar a normalidade, a clareza doutrinária na fé e na moral, restaurar o devido respeito pela lei e garantir que o primeiro critério para a nomeação de bispos é aceitar a tradição apostólica".

susana.f.salvador@dn.pt

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