Guia do beijo da geração do milénio

É de amor que se fala nesta coluna. Exclusivo DN/The New York Times.
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Quando um completo estranho me beijou sob as luzes artificiais de uma cabina de avião, num qualquer local por cima de águas internacionais, o meu primeiro pensamento foi para a senhora judia ortodoxa sentada à minha esquerda.

Esperava que ela estivesse a dormir. Era um voo de 12 horas de Telavive para Newark e eu também queria adormecer, mas como o iria conseguir agora?

O beijo, vindo do nada, transformou-me na heroína de um mau romance: o coração disparou, as pernas tremiam e sentia cada nervo do meu corpo. As mantas de forro polar azul nunca pareceram tão sexy.

Era um voo noturno e eu já tinha feito todos os cálculos: se dormisse já teria passado por cima da diferença horária de sete horas quando aterrássemos e estaria pronta para o regresso a um novo semestre na faculdade. A minha maior esperança para a viagem, além das horas de sono, tinha sido a de que eles servissem húmus no jantar a bordo.

O meu estranho e eu voltávamos de uma viagem da Birthright Israel com grupos das nossas respetivas universidades. A Birthright Israel é uma viagem gratuita de dez dias a Israel para jovens judeus-americanos e eu tinha querido ir antes de me formar. No inverno passado, antes do meu último semestre na faculdade consegui ir finalmente.

Por existirem tantos jovens nas viagens Birthright Israel, estas são muitas vezes alvo de gozo como sendo uma tentativa de estabelecer uma ligação com Israel através dos quartos - e, na minha viagem, isso aconteceu bastante. Mas não tinha acontecido comigo até àquele momento.

Estragando a narrativa perfeita de dois estranhos que se conhecem num avião admito que já nos tínhamos encontrado, apenas uma vez e por breves instantes, quando dei de caras com uma amiga da escola secundária durante uma paragem em Jerusalém.

Lembrava-me de que um dos amigos dela era giro. E agora ali estava ele atrás de mim enquanto embarcávamos no avião e, depois, ao encaixar a sua alta figura no lugar de coxia ao meu lado. Ao vê-lo arrumar a sua mochila no compartimento superior fiquei encantada com a minha sorte.

Entre nós, surgiu o tipo de intimidade instantânea provocada por personalidades abertas em compartimentos apertados. Falámos imenso sobre os mexericos das nossas viagens e sobre o que fizemos durante os dias passados em Israel. Namoriscámos. Beijámo-nos aquela primeira vez. Depois beijámo-nos outra vez.

Dividindo um par de auscultadores ouvimos os Red Hot Chili Peppers e a Taylor Swift. Dormimos pouco e mal.

Nascida e criada em Nova Iorque, achei a vida dele na Carolina do Norte, como um rapaz não tão judeu assim, estranha e deslumbrante. Ele e os amigos tinham feito coisas como grandes viagens a pé e, ao prepará-las, tinham desidratado a comida deles.

Gostei da facilidade dele, da sua disponibilidade para falar. Gostei do seu sorriso e dos seus olhos escuros. Ele sabia como descobrir onde iriam aparecer os arco-íris no céu e falou-me sobre a "Porta para o Inferno" no Turquemenistão, uma cratera de gás natural que tem estado a arder desde há mais de 30 anos.

Parecia tirado da contracapa de um livro de Nicholas Sparks: um sulista, estudante de ciências numa pequena escola de artes liberal e uma estudante de humanidades de uma grande universidade pré-profissional do Norte encontram-se nos céus sobre o Mediterrâneo. O ardor entre eles é palpável.

Mas existiam detalhes menos românticos: eu estava no último ano, prestes a começar o meu segundo semestre, com planos de ir para Dallas depois da licenciatura. Ele era um estudante do segundo ano, com o conforto de saber onde estaria durante os próximos anos.

Mas, de qualquer maneira, também não tinha importância, pois não? Dentro de 12 horas estaríamos de volta aos nossos caminhos que nos levavam em direções opostas. Este encontro era apenas um interlúdio romântico nas nossas vidas reais. E se aquele significava alguma coisa, nós éramos estudantes universitários; sabíamos como fingir que não significava nada.

No avião, as luzes voltaram e apareceu o carrinho do pequeno--almoço. A realidade instalou-se enquanto bebíamos sumo de laranja em copos de folha de alumínio e, pela primeira vez, tínhamos pouco a dizer um ao outro. Durante a aterragem acidentada, ele distraiu-me falando sobre acidentes de avião famosos.

E então, com uma desagradável pancada final estávamos no chão. Enquanto reuníamos os nossos pertences naquele que tinha sido o nosso lar temporário, eu perguntava-me o que aconteceria a seguir. Comprámos bilhetes no terminal dos comboios demorando-nos nas máquinas automáticas. Depois, quando estávamos prestes a embarcar em comboios que partiam em direções diferentes, olhámos um para o outro. Ele descansou um braço na sua mala de rodas com a perturbação visível nos seus olhos escuros.

Abracei-o num adeus rápido, sem delongas. Não trocámos números de telemóvel.

"Adeus", gritou ele nas minhas costas. "Até nunca mais."

Não consegui perceber se ele estava a falar a sério ou a brincar. Mesmo abraçando a mais positiva das possibilidades, aquilo doeu.

E aquilo deveria ter acabado por ali: uma história que contei, entre risos, às amigas, até que os detalhes se desvaneceram e ele passou a ser apenas um rapaz de cujo nome não me lembrava. Mas vi o nome dele no meu Facebook, num lote de fotografias que a nossa amiga comum tinha postado e não resisti.

Cliquei em "Adicionar Amigo". E um dia, ele enviou-me uma mensagem.

"Olá".

"Olá", respondi. "Como vai a vida?"

Foi assim durante vários dias. Mas falar com ele fez-me sentir como uma viajante no tempo, dividida entre os caminhos cobertos de neve do meu campus e o avião escurecido que tínhamos partilhado. Estava sentada nas aulas, em reuniões de amigos no café local ou a fazer as minhas leituras na biblioteca e, em seguida, uma mensagem no meu ecrã puxava-me de volta. Não gostava da maneira como aquilo perturbava o meu equilíbrio, como me fazia sentir distante e impotente.

Também havia uma rapariga da faculdade dele que espreitava ao fundo das suas mensagens. Estaria ele a tentar fazer-me ciúmes? Ou dar-se-ia o caso de não estar a pensar com clareza?

Os meios de comunicação têm um fascínio pela cultura do engate entre as pessoas da minha idade (21), à qual dedicam aprofundadas investigações e debates opinando sobre o significado da mesma. Mas muitas vezes perdem de vista um facto simples: não há nada de particularmente novo na nossa tentativa de evitarmos magoarmo-nos.

A verdade é que a minha geração transformou esta evasiva numa ciência, aperfeiçoando a separação entre o lado físico e o emocional. Fazemo-lo sempre que possível: mandamos mensagens em vez de telefonarmos, encontramo-nos através de aplicações em vez de o fazermos pessoalmente. Partimos de manhã cedo, sem dizer adeus. Sermos casuais é mais seguro do que a intimidade e a vulnerabilidade. Ou assim julgamos nós.

Ter a última palavra era, em tempos, sinal de perspicácia e inteligência. Significava que o nosso comentário era sério e definitivo. Mas hoje, ter a última palavra é sinal de fraqueza: significa ser a pessoa que não merece uma resposta. É melhor deixar o outro pendurado do que arriscar que isso nos aconteça a nós. Manter a coisa superficial para que o nosso coração não esteja em jogo.

Estar ciente de tudo isto não nos dá imunidade para as suas consequências.

Uma noite, o engate da minha companheira de quarto virou-se para ela na escuridão e perguntou--lhe num sussurro: "Isto é uma coisa especial?"

Confusa, a esfregar os olhos de sono, ela pediu-lhe para repetir. Não tinha a certeza de o ter ouvido bem.

"Não tem importância", disse ele.

Mais tarde, ela questionou-se se teria perdido um momento crucial, uma oportunidade que não voltaria. Mas se ela tivesse percebido mal arriscava-se a mostrar o jogo ao revelar que queria que ele ficasse até de manhã. Era uma perspetiva muito assustadora, portanto não disse nada.

Teria o meu interlúdio no avião sido algo de especial? Teriam as coisas sido diferentes se um de nós tivesse tido a coragem de dizer mais alguma coisa além de adeus, antes de nos dirigirmos para os nossos comboios respetivos?

Na plataforma, enquanto me afastava dele, eu tinha decidido que tudo aquilo tinha sido apenas uma das muitas ligações românticas que não se completam pelas quais passamos na juventude. Mas talvez essa atitude fosse também o problema.

Ele e eu tínhamo-nos conhecido num avião, mas dirigíamo-nos para destinos diferentes, por isso o nosso encontro estava marcado pela impossibilidade de as coisas irem a algum lado. Na época, eu tinha tido uma sensação inexplicável de conforto com tudo aquilo. Só depois percebi porque tinha sido uma sensação estranhamente familiar: a minha geração trata cada ligação como se estivesse a acontecer num avião, como se só tivéssemos aquela noite e não houvesse amanhã.

A nossa história não era assim tão diferente, afinal de contas.

Não sei o que mais poderia ter acontecido. Mas pergunto-me o que será que perdemos coletivamente ao tentarmos tanto não nos importarmos com isso. Fingimos que não interessa, que temos tempo, que somos invulneráveis porque somos jovens.

Ele e eu já não nos comunicamos mais; ele avançou e eu também. Mas na minha cabeça volto às vezes àquela plataforma de comboios. Viro-me para ele e digo adeus. E então, recordando as suas palavras de despedida, digo-lhe de volta: "Até nunca mais."

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