Guardiães das cidades santas do Islão contra guardiães da revolução islâmica. É de peso, e não de hoje, o ódio entre sauditas e iranianos, de repente inflacionado pela execução na Arábia de um clérigo xiita acusado de traição. A questão é se da retórica da "divina vingança" se passa à guerra aberta? Sim, aberta, não daquelas guerras por procuração que sauditas e iranianos travam na Síria ou no Iémen. Diga-se que é improvável, mas não impossível. Por alguma razão a Arábia Saudita é o maior importador de armas, resposta atávica de um país de 30 milhões (incluíndo 15% xiitas que vivem nas regiões petrolíferas) ao vizinho de 80 milhões..De quando data o choque entre sauditas e iranianos? Não há uma resposta, mas várias. De tempos imemoriais, dirão os que veem nos acontecimentos de agora mais um episódio do conflito entre árabes e persas; do século VII, responderá quem se lembre da batalha de Kerbala e do triunfo dos sunitas sobre os xiitas, até hoje uma minoria dos muçulmanos mas dominantes no Irão; de 1979, argumentarão os que apontam a revolução dos ayatollahs como uma ameaça às monarquias do Golfo; de 2011, defenderá aquele que vislumbra na rebelião na Síria o dedo saudita para fragilizar o arco xiita que vai do Líbano ao Irão..Há verdade em todas essas explicações, a que se somam a sobranceria dos persas citadinos em relação aos beduínos que fundaram o islão e, em sentido oposto, o desprezo dos árabes por esses muçulmanos que, embora contem a partir de 622 (ano da fuga de Maomé de Meca para Medina), insistem no calendário solar herdado dos zoroastristas..Claro que também se pode falar da influência do petróleo, hoje com preço demasiado baixo para a saúde dos cofres sauditas mas admissível para um Irão que se liberta das sanções, o que implica uma dupla dor de cabeça para a dinastia Saud: ter de lidar com mais anos de crude abundante nos mercados e de assistir ao fim do estatuto de pária do rival, autorizado pelos Estados Unidos e demais potências a manter o projeto nuclear desde que para uso civil..Salman, o rei saudita, tem 80 anos, Khamenei, o guia iraniano, 76. Ambos lideram países de jovens (metade dos sauditas e dos iranianos tem menos de 25 anos) e é visível que os seus diferentes tipos de conservadorismo chocam com a expectativa da sociedade. Significa isto que o velho ódio está condenado pelas novas gerações? Por terrível que pareça, não. A guerra entre sauditas e iranianos já começou e vai prosseguir, tal é a desconfiança mútua e o conflito de interesses. E por isso o risco de o Médio Oriente ficar ainda pior é enorme. Alguém acredita que estes países vão mesmo cooperar na Síria apesar da ameaça comum em que se tornou o Estado Islâmico?