Goya, o pintor que viu o futuro

Deixou-nos a eterna sedução das suas Majas, vestida e desnuda, mas também mergulhou nos abismos da alma humana. Parte importante da obra do pintor espanhol Francisco de Goya pode ser vista no Centro Cultural de Cascais até 9 de julho.
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Passou à História envolto numa lenda pícara que fez dele amante da Duquesa de Alba e de outras damas da corte dos Bourbons, de que foi primeiro pintor de câmara, com direito a tença fixada por Sua Majestade catolicíssima. Mas Francisco de Goya y Lucientes, nascido a 30 de março de 1746 em Fuentedetodos, província de Saragoça, foi um homem capaz de ver tão longe que teve artes de vislumbrar o futuro, tanto em termos técnicos como conceptuais. Vem isto a propósito da exposição que este domingo abre portas no Centro Cultural de Cascais: "Goya, testemunho do seu tempo".

Até 9 de julho podem ser vistas, pela primeira vez em Portugal, um conjunto de pinturas raramente exposto e várias séries de gravuras: "Os Caprichos", "A Tauromaquia", "Os Desastres da Guerra" e "Os Disparates ou Provérbios." Como nos diz uma das curadoras da exposição, Marisa Oropesa, "estamos perante uma exposição muito especial porque tem sido muito difícil ver estas quatro séries completas e, neste caso, conseguimos reuni-las na íntegra. "

Através das obras selecionadas para esta mostra, Marisa, que assume ser uma apaixonada pela obra do artista, considera que "conseguimos mergulhar na sabedoria da alma humana que Goya evidenciava. Sabemos que foi único como pintor e, como gravador, apenas tem paralelo em Dürer, Rembrandt e Picasso, mas é nesse conhecimento dos seres humanos que ele realmente se supera." Exemplo disso mesmo é a série "Os Caprichos", de 1799, onde o artista satiriza os excessos da sociedade do seu tempo num conjunto de 80 gravuras que foca sem filtros ou eufemismos temas como a duplicidade da moral dominante, a superstição, a bruxaria ou a Inquisição, incluindo o conhecido O Sono da Razão Produz Monstros. Embora não tenham circulado durante muito tempo - ao fim de duas semanas, Goya tê-los-à retirado de venda devido ao receio de se tornar ele próprio alvo da Inquisição - "Os Caprichos" são considerados um dos seus trabalhos mais influentes no futuro.

Marisa Oropesa destaca, por outro lado, o relevo que o artista deu às mulheres, ao mesmo tempo que denunciava as várias formas de violência de que elas eram vítimas: "Podemos dizer que Goya foi um proto-feminista, o que também podemos ver na série de gravuras dedicada à prostituição que estão aqui em Cascais. Muito antes de se falar de feminismo e de empoderamento, vemo-lo a retratar os casamentos de conveniência, em que vemos uma jovem, frequentemente menor de idade, a casar com um homem idoso porque assim a obriga a família, ou mesmo situações de violação coletiva."

No catálogo da exposição, podemos compreender até que ponto o pintor foi compassivo e solidário com as mulheres que, por razões várias, se entregavam à prostituição: "No século XVII, ensaiaram-se tentativas para encerrar os prostíbulos, por razões tanto religiosas como sanitárias, mas a medida apenas transferiu o problema para as ruas das cidades. A Europa ilustrada via a prostituição como uma realidade que não deveria ser proibida, muito pelo contrário, propondo que se tendesse para um controlo que não pusesse em causa, nem a ordem, nem a saúde públicas. Goya mostrou-se muito crítico com uma prática muito mal regulada e que fazia com que as mulheres frequentemente a exercessem de modo forçado. No Capricho 15, Belos Conselhos, uma mãe impõe à filha um negócio sujo, o que faz com que a jovem se sinta infeliz, como bem reflete o gesto captado pelo traço do buril e o sombreado dos olhos a água-forte. Podemos ver nas gravuras dedicadas a este tema a vontade do pintor de que estas mulheres recebam o respeito que merecem e não sejam maltratadas."

Também na série "Os Desastres da Guerra", Goya dá-nos a conhecer a coragem de Agustina de Aragón, que defendeu Saragoça do cerco francês com tal bravura que mais tarde seria integrada nas forças do Duque de Wellington com o posto de tenente. O retrato desta heroína no campo de batalha faz parte de conjunto de 85 gravuras feitas entre 1810 e 1820, que retratam de forma crua o rasto de destruição e morte deixado pelas invasões francesas em Espanha. "Goya foi o primeiro repórter de guerra", diz-nos ainda Marisa Oropesa, "o que ele nos dá a ver não é a glória do vencedor, como até aí acontecia, mas a brutalidade do invasor francês para com as populações espanholas e também a destas com os invasores. O que há de mais terrível no ser humano está nesta reportagem." Tal como aconteceu com muitos intelectuais e artistas também em Portugal, Goya pertenceu a uma geração que começou por ver nos ideais da Revolução Francesa uma luz de liberdade e justiça social, mas os horrores semeados Europa fora pelas tropas de Napoleão não tardaram a acordá-lo para uma realidade bem mais sinistra.

Pela mesma época, Goya produz a série dedicada à Tauromaquia, que também poderemos ver nesta exposição. Um tema que, como sublinha Marisa Oropesa, era pessoalmente caro ao pintor: "Ao contrário da maior parte dos artistas seus contemporâneos, Goya não conseguiu bolsa de estudo para estudar em Roma. Para tentar conseguir dinheiro para a viagem e estadia, fez-se toureiro, que, nessa época, era uma forma de ganhar bem, se se tivesse sucesso. É possível que depois se tenha deixado seduzir pela plasticidade do espetáculo, que, aliás, reproduz em várias das suas obras." Nestas 40 gravuras, podemos também ver retratada a única mulher toureira desta época.

O notável é que o homem que pintou tais abismos da alma humana foi capaz de nos oferecer a sensualidade e a beleza da Maja desnuda e a Maja vestida, que, durante muitos anos, se considerou ser María del Pilar Álvarez de Toledo, 13.ª Duquesa de Alba, amiga e mecenas do pintor. Um mito que Marisa Oropesa se apressa a desfazer: "Hoje sabemos que não podia ser, até pela idade. Hoje há um estudo que diz que poderia ser a amante de Godoy [primeiro-ministro de Carlos IV], Pepita Tudó."

Goya, com um sentido único de liberdade, combinava a demanda da beleza com a expressão das suas convicções em matérias sensíveis como a religião e o duvidoso funcionamento da vida política ou o seu desagrado pela opressão intelectual. Como se pode ler no catálogo: "Até ao século XVIII, a grande maioria dos artistas seguiam sempre os mesmos esquemas artísticos. Só muito raramente os mestres da arte eram capazes de romper com os estereótipos e os convencionalismos exigidos. Da Vinci, Rembrandt ou Velázquez são alguns dos artistas que souberam criar novas perspetivas na arte da sua época e que, ainda hoje, seguem vigentes, sendo fonte de inspiração como se se tratassem das musas do Olimpo. O espanhol Francisco de Goya (1746-1828) é também um desses artistas que acordam da sua letargia e procuram sem descanso novas vias artísticas. O novo rumo que empreende, rompendo com as convenções clássicas, permite-lhe fazer parte desse exclusivo grupo de artistas atemporais da História da Arte."

Para além destas quatro séries de gravuras, a exposição de Cascais dá a ver 10 pinturas expostas pela primeira vez em Portugal, entre as quais a série Jogos Infantis, produzidas entre 1775 e 1786, em que Goya retrata com naturalidade cenas da vida quotidiana e as brincadeiras de um grupo de crianças. As obras pertencem à Coleção da Fundación de Santamarca y de San Ramón y San Antonio, sediada em Madrid. Nos detalhes destes quadros tão ternos como amargos, os visitantes poderão observar como Goya também aqui faz uma aguda observação sobre a sociedade do seu tempo, chamando a atenção para as enormes desigualdades sociais da época. Por exemplo, em Crianças no Baloiço, o pintor retrata algumas crianças vestidas com uniformes escolares impecáveis, que contrastam com as roupas esfarrapadas usadas por outras crianças da mesma idade. Na cena que se desenrola em Crianças à Luta por Castanhas o que vemos é um homem, de uma janela, atirar castanhas para as crianças que lutam entre si para saciar a fome.

Destacam-se ainda duas obras que pertencem ao Museu Goya - Coleção Ibercaja, Baile de Máscaras (c. 1808-1820) e o estudo para O Dois de Maio de 1808 ou A Carga dos Mamelucos (1814), uma das suas obras-primas, hoje parte da coleção do Museu do Prado, em Madrid. Os outros dois quadros são pinturas religiosas que Goya produziu na primeira fase da sua carreira, quando viveu e trabalhou em Saragoça.

A exposição termina com a apresentação de treze gravuras que fazem parte da série "Os Disparates ou Provérbios" (1815 - 1824), a última produzida por Goya. Em representações oníricas marcadas pela violência psicológica, pelo grotesco e pelas trevas, que ainda hoje geram as mais diferentes reações e interpretações, o artista aborda os mais diversos temas, do Carnaval à política. Pioneiro também na exploração plástica do subconsciente mais de um século antes da criação da Psicanálise, o artista preconiza aqui o trabalho dos expressionistas e surrealistas no século XX, Como também se pode ler no catálogo:. "Goya recupera o género sonhos, muito difundido na época medieval e retomado por Quevedo no século XVII. Entendia as suas invenções como sonhos, que explicavam o absurdo e irracional do homem e da sociedade à qual pertencia, e pretendia dar exemplo e ser testemunha sólida da verdade. Mostra-nos uma sociedade que não se adapta aos novos tempos, com mentes obscurecidas e confusas por falta de ilustração, ou estimuladas pelo descontrolo das paixões. Por meio do sonho, libertado da razão, apresenta-nos todo o tipo de monstros e animais que simbolizam o mal, os vícios humanos, a superstição, a bruxaria e a loucura de uma sociedade sem freio."

Para Marisa Oropesa, a descendência pictórica de Goya é vasta e estende-se por vários ramos: "Olhamos para esta série e percebemos como antecipou o surrealismo. E também o impressionismo, há óleos que partem realmente de quatro manchas de tinta." Fala da sua influência sobre Edouard Manet, Joan Miró ou Salvador Dalí mas destaca ainda a evidente relação com o universo de Paula Rego, cuja Casa das Histórias está bem perto do Centro Cultural de Cascais: "Têm ambos o mesmo gosto pela sátira social, feita através de alegorias e aberrações, de animais postos fora de contexto como os macacos ou os burros." Uma filiação de que a própria Paula Rego estava consciente como admitiu numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro incluída no livro Paula Rego por Paula Rego: "As gravuras do Goya são os Disparates, os Desastres da Guerra, essas coisas todas famosas. Tinha lá essas coisas todas que eu via, não é? Terríveis coisas. Gostava. O terrível é bom."

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