Talvez seja da palavra. Dar gorjeta soa mal, deixar uma gratificação quase ninguém diz, e espórtula já só existe nos dicionários ou na má literatura que forja o que julga ser erudição nos sinónimos do Word; e gorja ou górjia são ainda piores do que gorjeta..Na origem da palavra está uma bebida dada por simpatia na retribuição de um serviço, na origem deve estar a gorge, que é como dizem os franceses garganta, garganta molhada com a bebida, bebida dada como pourboire, que é como os franceses dizem gorjeta. Mais valia serem eles a dizer gorjeta, ou gorgette, e nós outra coisa qualquer, bebida. Ou melhor, pingo. Gorjeta devia ser pingo. Fui tão bem tratado no restaurante que deixei cinco euros de pingo. Dá no singular e no plural, tem uma origem patusca e aproxima de tip, o que fica na ponta..Na origem da palavra está também uma forma estranha de retribuição, com certeza em relações pouco horizontais, muito obrigado por me ter carregado as malas cinco quilómetros, quer um copinho de água?.Talvez seja da palavra o desuso da coisa. No cinema já não é comum, nos táxis cada vez menos, nos restaurantes a coisa ainda se vai aguentando, mas as novas gerações parecem não apreciar. Nos Estados Unidos, há regras sobre gorjetas (ou pingo), que mais simplesmente se chama tips, ou gratuity em linguagem de escriturário, 15% é a regra, atreve-te a deixar menos e vais ver..Duas coisas sobre impostos e gorjetas (ou pingo): o modo como os impostos hoje são cobrados tem qualquer coisa de gratificação, que os aproxima mais do étimo tributo. Ao contrário do que se passava há cem anos, os impostos hoje são pagos voluntariamente pelas empresas e pelas pessoas, quase sem nenhuma intervenção do Estado. Claro que há a obrigação legal, mas não há a intimação prévia para o pagamento. Isto quer dizer que se num determinado mês nenhuma empresa entregasse o IVA, a retenção na fonte, os pagamentos por conta e as contribuições para a segurança social, o Estado fechava as portas. Este elemento voluntário, cumprido ritualisticamente pela sociedade, é realçado por Noam Chomsky no documentário An Inconvenient Tax, de 2011, de Christopher Marshall, um perfeito desconhecido, que antes tinha realizado um documentário sobre colecionadores de PEZ, aqueles bonecos de plástico que distribuem uns rebuçados retangulares pela boca quando se lhes inclina a cabeça para trás. Outra coisa é saber se as gorjetas (ou pingo) devem ou não ser tributadas. Nos EUA toda a gente finge que sim, mas a maioria não são tributadas, sobretudo as pagas em dinheiro vivo. (A expressão dinheiro vivo devia reservar-se para divisas em circulação, como o dólar ou o euro, por oposição a dinheiro morto, como a peseta e o escudo, fica a sugestão). Em Portugal elas são tributadas a uma taxa de 10%. A taxa menor do que a normal funciona, em tese, como um incentivo à declaração das quantias recebidas, mas desconheço a sua eficácia, e temo que no setor da restauração seja diminuta. A propósito de um antecedente desta norma, os trabalhadores dos casinos vieram alegar que eram apenas eles que se tramavam, porque as gorjetas (ou pingo) que recebiam nas bancas eram todas controladas e declaradas, e como eram mais controlados do que os outros, a norma violava o princípio da igualdade. Quem não foi na conversa foi o Tribunal Constitucional que lhes disse: azarinho, isso não faz da norma inconstitucional..E é mesmo o azar, ou o medo dele, que faz o jogador dar a ficha ao croupier, para manter a sorte naquela mesa, naquela mão. É irracional, claro que é. Mas será mais racional o que nos faz dar uma gorjeta (ou pingo) num restaurante? Há anos que os economistas andam preocupados a estudar o que faz as pessoas darem ou não gorjeta (ou pingo). No fundo, andam a explorar as fronteiras do obrigatório e do não obrigatório. É para ajudar a completar um salário com pena de quem nos serve? Nos EUA claramente, e por isso estamos mais dentro do obrigatório; em Portugal, menos. Então o que nos faz dar gorjeta (ou pingo) em Portugal? Dar porque se dá, porque é assim? Para evitar aquele olhar do empregado quando recolhe o pratinho da conta vazio? O pior é gerir a dança da gorjeta (ou pingo) com outras pessoas. Contas de cem euros e alguém diz, dois euros de gorjeta (ou pingo) está bem, não está? Claro que dois euros não está bem, mas dizer que não está bem é chamar mão-de-vaca ao boi do co-comensal. Enfim, dilemas. Mas sobre isto não vale a pena ler os economistas, é rever o Reservoir Dogs, e aquela cena em que o Mr. Pink diz "I don"t tip"( que é bastante mais incisivo do que "eu não dou gorjetas", daí a necessidade de substituir gorjeta por pingo), e depois dali se arranca para um inteligente diálogo sobre a necessidade de dar ou não pingo. E no fim de tudo a conclusão é a de que a culpa é do Estado, que tributa as gorjetas. O Mr. Pink até assinava uma petição contra o Estado dar gorjetas (ou pingo), agora ele dar gorjeta (ou pingo) é que não. Na conversa o Eddie, penso, relembra-lhe que se não fossem as gorjetas (ou pingo) as empregadas ganhariam menos do que o salário mínimo. Calcula-se que nos EUA sejam dados em gorjeta (ou pingo) 40 mil milhões de dólares, o que equivale a todos os impostos cobrados em Portugal num ano. Gorjetas (ou pingo), de um lado; impostos, do outro..Espera, será que o plano B do Ministério das Finanças é passar a tributar mesmo o pingo?