Há uma afirmação audaciosa a abrir o segundo capítulo: 24 de fevereiro de 2022 vai ficar para a história como data mais relevante do que o 11 de setembro ou 9 de novembro de 1989. De onde vem essa certeza? Este é, de longe, o momento mais grave e complexo desde a Segunda Guerra Mundial. É o evento com maiores consequências globais desde aí, aquele em que, ao mesmo tempo e em mais países, mais ondas de choque provoca: em termos financeiros, económicos, políticos, energéticos, ao nível da segurança alimentar. Não é uma "guerra mundial", mas tem enorme impacto global. E potencial para gerar mudanças mais duráveis e disruptivas. É na Ucrânia que, desde 24 de fevereiro de 2022, está a ser definida a nova fronteira da Europa democrática. Não terá a ver só com o destino dos ucranianos: será o destino de todos nós, europeus..O livro surge como uma obra de divulgação sobre a guerra na Ucrânia, mas também reflete sobre as implicações geopolíticas, tendo em conta os papéis dos EUA e da China. A guerra faz-se entre Moscovo e Kiev. E a paz? Numa guerra de agressão, só faz sentido falarmos de paz quando conseguirmos acrescentar a seguir o termo "justa". Uma paz que permita ao agressor ficar com parte do território ocupado seria uma paz miserável de premiar o agressor e aceitar a submissão do agredido. Não seria aceitável. Nesse sentido, a paz deverá sempre passar pela retirada integral das tropas russas da Ucrânia e cessação das hostilidades. A China quer afirmar-se como promotor de paz. Seria positivo, mas é preocupante que, nos 12 pontos que apresenta, nunca seja clara a dizer que a Rússia é agressora e violou o direito internacional. Por outro lado, Xi Jinping quer ser mediador e ainda não falou com uma das partes, Zelensky, o que é, no mínimo, criticável. Putin entende a Ucrânia como um espaço natural da Rússia e não a vê com uma soberania integral à parte do espaço russo. E isso, é preciso explicar, vai ao encontro do que escreveu recentemente num ensaio em que assumiu: "Estou cada vez mais convencido de que a Ucrânia não precisa do Donbass". Putin pôs em causa a Ucrânia como ela até agora existiu. Considerou que a Ucrânia moderna só existe em terras russas. A Rússia de Putin quer a garantia que a Ucrânia não entra na NATO; mas quer mais - pretende ter garantias de que a expansão da NATO a leste é travada; pretende o congelamento da infraestrutura militar nas antigas repúblicas da URSS, não só na Ucrânia; a retirada dos mísseis de médio e longo alcance na Europa e ainda o fim da ajuda militar à Ucrânia. Numa análise mais alargada, Putin desejará, ao provocar instabilidade e minar a confiança nas instituições de Kiev, uma possível mudança política para um governo pró-russo na Ucrânia. Já a Ucrânia tem razões objetivas para se sentir ameaçada na soberania e integridade territoriais, não só de agora, mas desde 2014. Ambas as partes não dão mostras de estarem em condições de recuar: se a Ucrânia parar de lutar, acaba como identidade própria; se Putin mandasse retirar as tropas da Ucrânia, corria o risco de não sobreviver internamente. Caímos numa luta existencial para os dois campos. Tudo indica que esta será uma guerra de longa duração, de desgaste, possivelmente com fases de baixa intensidade, como já é no Donbass há nove anos..A China como parceiro "sem limites" de Moscovo e a Índia que preside ao G20 são a ter em conta enquanto possíveis mediadores? Há quem veja na jogada ambígua de Pequim, ao avançar com a proposta de 12 pontos para a paz que não apresenta, verdadeiramente, um plano para a resolução do conflito um pretexto para, numa próxima fase, poder dizer ao Ocidente: "Não quiseram a paz" e assim poder apoiar mais claramente o aliado russo. Por enquanto, a China quer aparecer como pacificador e marcar pontos nos três quartos da população mundial que vivem nos países que não votam contra a Rússia. China e Índia têm todo o interesse em manter apoio implícito à Rússia nos planos comercial, económico, tecnológico e até político. A grande questão é se haverá alguma alteração no posicionamento de Pequim e Nova Deli quanto a um possível apoio militar a Moscovo - e isso continua a ser francamente improvável. A China é uma parceira "sem limites" da Rússia e continuará a ser. Nestes 13 meses, e após dez pacotes de sanções da UE a Moscovo, a China aumentou em 40% as trocas comerciais com a Rússia. A Índia teve salto ainda maior: viu crescer a sua relação comercial com a Rússia em 120%. Fica, deste modo, mais fácil de compreender porque é que Xi e Narendra Modi não encostam Putin à parede no que toca à vontade de travar a guerra. No caso da Índia, a Rússia é o seu maior aliado. Moscovo é o fiel da balança na rivalidade entre Pequim e Nova Deli..Em que medida a rivalidade dos EUA e da China poderá condicionar negativamente o desenlace do conflito? A China também está contra a expansão da NATO. A diplomacia chinesa acusa Washington de instigar a guerra na Ucrânia e defende que a NATO devia ter sido dissolvida após o colapso da União Soviética. Tudo isto sinaliza que Pequim tem, no essencial, uma visão alinhada com Moscovo - e não deixa de constituir uma espécie de apoio implícito à posição russa de travar a entrada da Ucrânia na NATO. A rivalidade EUA-China é a grande história do nosso tempo. E continuará a sê-lo por algumas décadas. Dizer esta frase em 2023 parece estranho, quando vivemos a maior guerra em espaço europeu nas últimas oito décadas. Putin, pela força bruta, baralhou os dados - e colocou a Rússia, de forma anacrónica, num protagonismo indevido e artificial, precisamente porque sabe que só com o poder militar pode disfarçar essa evidência: a de que o domínio norte-americano e chinês é tão gigantesco em todos as dimensões que não a militar..Apresenta quatro cenários sobre o fim do conflito, sendo que o realista passa pela manutenção dos russos no Donbass. Como é que Kiev pode contrariar estes cenários? Esperemos que Kiev venha mesmo a ter o poder de decisão sobre o caminho a escolher. Terá tudo a ver com a continuação, ou não, e até quando, do apoio militar do Ocidente à Ucrânia. Kiev está confiante e anuncia a preparação de contraofensiva substancial para os próximos meses, usando o novo patamar de armamento que recebeu nas últimas semanas. Mas Putin acredita que prolongar a guerra, com pausas intermitentes nos combates, pode ser o melhor caminho para eventualmente assegurar os interesses estratégicos russos na Ucrânia, mesmo que isso leve anos. Bem sabe porquê: a Rússia tem três vezes mais homens que a Ucrânia - e a vida dos seus combatentes vale para a sua liderança muito menos..A Ucrânia continua a receber apoio militar, como o mais recente pacote anunciado durante a visita de Zelensky à Polónia. Mas como pode avançar para uma contraofensiva sem munições, tanques ou aviões suficientes? Não pode. E é exatamente por isso que, mais de 400 dias depois, Zelensky continua a pedir mais e mais. Não é um capricho: é uma questão de sobrevivência. Dar carros de combate pesados à Ucrânia não é escalar a guerra. Muito menos provocar a Rússia. É reconhecer à Ucrânia, o agredido, o direito de se dotar de "paridade de fogo" perante os instrumentos detidos pelo agressor..Não esconde tomar partido pela Ucrânia nem em criticar Vladimir Putin. O que diz aos leitores que vão acusá-lo de parcialidade ou de falta de objetividade? Cabe-me dar opinião e a opinião, por natureza, não é objetiva e imparcial. Implica subjetividade e tomar posições. Tento fazê-lo sempre de modo sustentado e factual, dando foco no contexto, na cenarização e na avaliação das consequências. Escrever opinião não é escrever notícias: é tomar partido. Entre um agressor e um agredido, entre uma potência revisionista e uma democracia, grave seria manter-me neutro e cair em falsas equivalências. Num contexto destes, a ambiguidade seria má e a clareza de posições é fundamental..Uma segunda parte é composta por entrevistas a duas jornalistas que estiveram no terreno. Qual foi o objetivo? É uma parte fundamental do livro. Por muito importante que seja a análise, e é, só conseguiremos compreender uma guerra desta dimensão e complexidade se aprendermos com quem esteve no terreno. Falei com duas jornalistas e repórteres de exceção (a Susana André, da SIC, e a Ana França, do Expresso) e tentei recolher elementos que não seriam possíveis de obter no resto do livro: histórias relatadas na primeira pessoa por quem esteve lá; caracterização de emoções e sentimentos sobre como se vive sob bombardeamentos ou abrigado numa estação de metro, por semanas ou meses. Nessa parte do livro, a que chamei "A guerra vista por dentro", ficou por exemplo mais claro que a forma como na Ucrânia se vive e perceciona a agressão russa é bem diferente em Lviv (a oeste) ou Kiev (a noroeste) do que é para quem está na frente de batalha, no Donbass..A Guerra Incomportável Germano Almeida Prime Books 176 págs..cesar.avo@dn.pt