Família maranhense

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O melhor das viagens são as pessoas no caminho. Planeara ficar apenas duas noites em Barreirinhas. Os deuses do acaso, especialistas em viagens, tinham, porém, outros planos para mim. A estada em casa do Roberdan Caldas foi tão familiar que acabei por ser "adotada" por ele e pelos amigos. Batizada de prima próxima. Tomamos banho de rio, jogamos basquetebol, voleibol e tentei dançar forró. Tentei.

Milton Uchôa, 27 anos, partilha casa com o meu anfitrião. É enfermeiro e conhece bem a realidade das comunidades ao redor de Barreirinhas. Sonha criar uma rádio comunitária, para informar melhor os jovens sobre questões de saúde e alguns tabus. Este será o tema principal da nossa conversa. Sem planos para o fim de semana, leva-me a casa dos primos dele. Gílvia e Antônio Uchôa são os "tios" que me recebem com uma sobrinha. Decidimos, "em família", ir à estância balnear de Tamboril, a cerca de uma hora de Barrerinhas. Como saímos de manhã, sem destino, não levei fato de banho. Quando chego, uma surpresa: Gílvia levou-me um "maiô", toalha e uma muda de roupa. Descobrimos que o pai dela é Rodrigues por parte da mãe. Tudo em família, portanto.

Desço de boia o córrego que é afluente do rio Preguiças. Comigo está Milton, os primos dele agora meus, Artur e Pedro, e um amigo, João. Na viagem, entre o chapinhar fluvial, a boia vai em peleja com as margens e suas raízes caudalosas. Voam borboletas amarelas. Pedro aproveita a flor de uma vitória régia e faz-me um colar majestoso. No final da descida, eles decidem criar uma ONG para pôr o sonho da rádio comunitária a funcionar.

Começa a escurecer e Milton chama-me para vislumbrar o pôr do Sol. Um espetáculo de laranja--forte, rosa-violáceo e os galhos das árvores em contraluz.

Voltamos todos a Barreirinhas. O enfermeiro vai deixar o irmão Cainã, que é músico, no bar onde ele vai tocar nessa noite. Reflito sobre o dia e ensaio um poema que termina assim: "Viajamos no fluxo de um rio de vida/E isso está cinzelado no sonho vivido/uma prosa fluvial escrita na água/No voo das borboletas/na raiz do sopro do dia/crianças de nós que moram nas margens deste sentido."

No dia seguinte é domingo. Almoçamos em casa dos irmãos Uchôa no povoado de Tapuio, conhecido pela Casa de Farinha. Dista uma hora de Barreirinhas. Atravessamos o rio Preguiças num barco local e o irmão mais velho de Milton, Teudas, veio buscar-nos de quadriciclo (moto 4). Não cabemos todos. Serão duas viagens. Vou primeiro, passando por casas de madeira, areia batida e lamacenta. Gessina Dalva, a mãe dos Uchôas, tem o almoço pronto. É carinho maternal. Para beber: o famoso refrigerante cor-de-rosa Guaraná Jesus do Maranhão, com sabor a cravo e canela. Antes do banho no rio Preguiças, descansamos nas redes. Cai uma chuva tropical entre o bananal. E a minha estreia: sozinha de "quadriciclo" pelo povoado. Já na margem do rio, Milton comenta: "Só faltou você falar com as pessoas da comunidade." Concluo que, naquele instante, tenho tudo o que preciso, sobretudo uma família maranhense.

Jornalista

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