Foi deportado dois anos depois de ter chegado à Bélgica, "não tinha papéis", diz Rui Garcia Borralho. Voltou e hoje é o proprietário da pastelaria que é um dos negócios portugueses mais conhecidos em Bruxelas. É ao pastel de nata que vem a maioria, "e alguns estrangeiros até dizem que estes são melhores do que os de Belém", diz o pasteleiro, que abriu a casa em 1990 "sem dinheiro nenhum - hoje seria impossível". Garcia Borralho é a face da imigração tradicional portuguesa, veio em busca de melhores condições de vida munido daquilo a que chama "o espírito de aventura português. Está-nos nos genes". .Aos fins-de-semana chega a fazer - na minifábrica que tem instalada na cave - seis mil pastéis de nata. Mas na vitrina também há os de Tentúgal, as tortas de laranja, as empadas, os rissóis e o pão com chouriço. Lá dentro, a contrastar com a montra art-déco, construiu a fachada da casa que tem em Portugal, "na terra", em Montemor-o-Novo, e em frente uma pequena fonte. "O tempo está sempre esquisito e eu queria criar um espaço onde as pessoas pudessem sentir-se na rua: é um pequeno largo no Alentejo!" Só falhou a calçada "mas a estrutura podia não aguentar."."Quem vinha aqui muito era o [António] Vitorino, com a sua senhora, comia o seu pastel de nata e bebia um café", lembra Garcia Borralho, que admite não conhecer os nomes de todos os eurodeputados que já viu entrar no 77 da Avenue de la Couronne, uma avenida longa, próxima do quarteirão europeu, e que alberga também, do lado contrário, o ponto de passagem obrigatória sempre que há bola da televisão, o Café Portugal. É mais ou menos aqui, aliás, que começa a zona onde se fixaram mais portugueses em Bruxelas, Ixelles - à volta da Place Flagey, que homenageia Fernando Pessoa com um busto renovado, sentado sobre um pedaço de calçada portuguesa assente por calceteiros lisboetas. .Aqui é quase como ter um bocadinho de Portugal em cada esquina. É uma zona onde se misturam os cheiros e cultura belgas com os sabores lusitanos. Depois de ter fechado um café - O Cantinho da Igreja - que teve durante dezanove anos, na esquina que dá para a igreja onde todos os domingos se celebra missa em português, Ramiro José, Zezé para quem já o conhece, abriu uma mercearia portuguesa, a somar às várias que existem na zona. E mais do que locais de comércio, estes sítios são uma espécie de ponto de encontro dos portugueses que vivem em Bruxelas, pontos de auxílio também. "Se é preciso arranjar um canalizador, um electricista, isso é só vir aqui que se arranja, temos de nos apoiar uns aos outros", conta Ramiro José que se queixa ao mesmo tempo de que "em França havia mais solidariedade entre os portugueses". "Aqui há muita jalousie", diz num discurso que já se apoia aqui e ali nas palavras e nos trejeitos típicos do francês. "Et voilà!", brinca, "são muito ciumentos, é isso". .É conhecido "por toda a gente" no bairro onde se ouve falar português em muitas portas de café. Ramiro José é conselheiro para o comércio na Comuna da Ixelles e diz que já levou muitos ao registo "para ter os papéis" em ordem. Tal como na Confeitaria Garcia, também na Épicerie Portugal se espelha o retrato da imigração portuguesa das décadas que antecederam o 25 de Abril e a sequente. "Fui obrigado a imigrar, eu nunca gostei do homem [Salazar] e não havia possibilidades para levantar um bocadinho a cabeça, era difícil, ganhava-se pouco." Em 1966 lá foi para França trabalhar como maçon (pedreiro), "meteram-me um martelo e um lápis à cintura e fui fazer o que os portugueses faziam". A Bélgica surge "por acaso", também "à aventura", porque um cunhado precisava de alguém num café que hoje ainda ali está, mais acima, já em Saint-Gilles, outra das comunas privilegiada pela comunidade portuguesa. Além da mercearia, Ramiro e a mulher, Helena, ocupam-se diariamente de uma loja de artesanato português. Artigos de olaria, Nossas Senhoras de Fátima, artigos de renda tradicional, fatos para baptizados e primeiras-comunhões, ele há de tudo na Portugala. "É uma pena que ninguém me ligue nenhuma, nem os dignitários da embaixada, mas sou o único em Bruxelas a vender estes artigos, isto é para promover o artesanato português, porque não dá lucro nenhum." .Fazem parte não só de uma geração diferente, mas também de uma geração que vê na Europa oportunidades de trabalho qualificado. Falam as línguas da Europa e acumulam atrás de si um percurso académico e profissional rico mas, acima de tudo, europeu e internacional. Estão virados para fora. Cármen Silvestre e João Rodrigues são apenas dois dos cerca de setecentos portugueses que trabalham para as instituições da União Europeia e nas organizações internacionais que orbitam em torno da esfera comunitária. .Há um ano que se juntou à equipa do Open Society Institute, uma das organizações do império de George Soros, trabalha com assuntos africanos e direitos humanos, "um bichinho" a que Cármen Silvestre decidiu dar vida numa pausa na carreira diplomática. .Depois de Nova Iorque, onde diz que teve "um começo muito bom" na diplomacia, Cármen Silvestre viu-se "de repente" a integrar a delegação portuguesa em Timor- -Leste, "na altura em que a Indonésia anunciou o referendo em Timor", conta, ao mesmo tempo que lembra que "se houve altura em que fez parte de um momento histórico foi esse". Trabalhou lado a lado, a convite pessoal, com Sérgio Vieira de Mello, representante de Kofi Annan em Timor, e foi com essa bagagem que, há três anos, chega àquela que é, politicamente, a capital da UE. .Os direitos humanos, área por que decidiu interromper temporariamente a diplomacia, esperavam-na na Human Rights Watch, uma das grandes ONG internacionais e, depois, a Amnistia Internacional. E é com a experiência combinada que acumula aos 38 anos que Cármen Silvestre diz que os portugueses, em Bruxelas, têm de aprender a "posicionar-se". Networking, a palavra anglo-saxónica que se ouve vezes sem conta no contexto internacional e para a qual não existe um equivalente óbvio na língua portuguesa, mas que se traduz, explica Cármen, "pela capacidade de criar uma rede informal de relacionamentos e de contactos" e que acaba por ser "um método de fazer bem o nosso trabalho e de progredir na carreira - a não confundir com o nosso velho sistema das cunhas", avisa. "Os portugueses não são bons a fazer isto" e "tal como o lóbi, o networking é visto em Portugal como uma coisa que é quase suja, que não se faz" e é precisamente desta falha que nasce o Portugal Network, uma rede humana que visa juntar todos os portugueses que aqui trabalham. Existisse a tal "habilidade" e a "persecução dos interesses nacionais dentro das instituições, assegurar que a perspectiva específica de Portugal em certos assuntos, estaria lá quando são tomadas decisões". .João Rodrigues nota o impacto do seu trabalho nas decisões que são tomadas no Parlamento Europeu nos assuntos em que trabalha. Saltou de Lisboa para o Luxemburgo, para o Tribunal de Justiça, aos 24 anos, saído de fresco da Faculdade de Direito, e daí, três anos mais tarde, para o Parlamento Europeu, em Bruxelas. No entretanto, foi à Sorbonne, em Paris, fazer uma pós-graduação e passou o concurso europeu para ser funcionário da UE. É jurista e, no essencial, é um dos que dizem até onde é que os eurocratas podem ir nos limites da lei. Faz parte da comunidade portuguesa em Bruxelas há cinco anos e diz--se um "imigrante de luxo", em comparação com "aquela imigração tradicional", porque um funcionário europeu usufrui de "condições muito, muito boas". .Imagina-se em Bruxelas daqui para a frente e diz que já se habituou a uma cidade que, "não é deslumbrante". "Tem uma coisa boa, é muito cosmopolita, diversa", mas também por isso "não tem grande identidade, é uma cidade de contrastes". E se as saudades do país a que ainda chama de "casa" surgirem, João Rodrigues vai à procura do bacalhau: "Há muitos restaurantes portugueses e muitos sítios em Bruxelas onde matar essas saudades."