Fado - de Portugal para o mundo

Publicado a
Atualizado a

A candidatura do Fado a Património Cultural Imaterial da UNESCO foi entregue em Junho passado. O processo apresenta-se sólido, estamos a promovê-lo com o maior empenho e não tenho qualquer dúvida de que ele virá a integrar a Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da UNESCO.

Muito se tem falado desta candidatura, desde que no começo da década se começou a pensar nela. Mas nem sempre nos termos mais rigorosos, o que pode criar equívocos que é sempre bom evitar. Como embaixador de Portugal na UNESCO, sinto, por isso, que devo fornecer alguns esclarecimentos sobre a natureza e os objectivos desta candidatura, aproveitando a ocasião para, a propósito, reforçar uma sugestão que já tenho feito.

Uma das principais missões da UNESCO, enquanto única agência mundial do sistema das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura, é o estabelecimento de normas que enquadrem e incentivem a concretização dos seus principais objectivos estratégicos. Estes dispositivos normativos tomam geralmente a forma de Convenções. A primeira foi a Convenção do Património Mundial, de 1972, que, depois da recente reunião do respectivo Comité em Brasília, integra agora 911 bens classificados em todo o mundo, sendo treze portugueses, e cerca de 20 de origem ou influência portuguesa. Entretanto, foram aprovadas outras Convenções, como a do Património Subaquático em 2001 (largamente inspirada, de resto, na legislação portuguesa de 1997) ou a da Promoção e Protecção da Diversidade das Expressões Culturais, em 2005.

Em 2003 foi aprovada a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, com o objectivo de proteger as tradições e as expressões vivas herdadas dos nossos antepassados, que devem ser transmitidas aos nossos descendentes, nomeadamente as tradições orais, as artes do espectáculo, diversas práticas sociais (rituais e festas), conhecimentos e skills ligados ao artesanato tradicional.

Trata-se de um património que a UNESCO decidiu consagrar tendo em vista não só a manutenção da diversidade no contexto da globalização mas também o seu papel na vida das comunidades que o reconhecem como tal. O seu valor decorre, pois, mais do que do seu significado universal (como acontece com os bens integrados na lista do Património Mundial da Humanidade), do seu enraizamento local e do seu significado comunitário.

É isto que leva a que, nesta Convenção, se valorize tanto o processo de transmissão do património que garanta a sua continuidade no tempo como as suas manifestações pontuais actuais, quer se trate de dança, de canto ou de artesanato. É ainda também por isso que são enunciadas várias reservas de fundo quanto à mercantilização destes bens, seja pela via do turismo, da folclorização ou de outras formas de dependência do mercado.

A Convenção de 2003 estabeleceu dois âmbitos muito distintos, o dos Planos de Salvaguarda e o da Lista Representativa. Ao primeiro candidatam-se bens em perigo cuja conservação exige medidas de protecção que a UNESCO pode co-financiar. Aos segundos, candidatam-se os bens que visam obter umas visibilidade que aumente a consciência da sua importância, contribuindo assim para o respeito da diversidade cultural e da criatividade. É à integração nesta última lista que o Fado é candidato: o que se pretende é que o Fado seja incluído na Lista Representativa do Património Cultu- ral Imaterial, não - como tantas vezes equivocamente se tem dito - na Lista do Património Mundial da Humanidade.

O objectivo da candidatura do Fado é, assim, juntar-se ao conjunto de 166 bens que, depois das decisões de 2008 e 2009, já fazem parte da Lista Representativa, sendo cerca de um terço deles cantos, como acontece, por exemplo, com a Isopolifonia Popular, da Albânia, o Radif, do Irão, os Cantos dos Baal, do Bangladesh, o Grande Canto dos Dong ou a Ópera Kun Qu, da China, o Ahellil do Gourara, da Argélia, a Música dos Garifuna, das Honduras, o Chopi Timbila, de Moçambique, o Duduk, da Arménia, os Cânticos Populares Quan Ho de Bac Ninh, do Vietname, ou o Leelo Seto, da Estónia.

Será naturalmente excelente, e uma razão de júbilo nacional, que o Fado venha a juntar-se a estas expressões do Património Cultural Imaterial, como todos nós esperamos que aconteça no próximo ano. Para o conseguir é todavia vital não cometer erros, nomeadamente dois. O primeiro seria o de permitir que se usasse a candidatura para consagrar uns e marginalizar outros, num jogo de capelas e de lobbies que teria certamente resultados funestos. É fundamental que se respeite a realidade plural do Fado, não só em toda a diversidade das suas expressões e intérpretes - por maior que ela seja - como na diversidade das suas interpretações históricas, por mais díspares que elas se apresentem. O que não pode acontecer é que alguma dessas interpretações, a pretexto desta candidatura, procure impor-se a outras, como se se tratasse de uma verdade superior e incontestável.

O segundo erro a evitar é o de se pensar que se consegue a aprovação da candidatura do Fado multiplicando, nomeadamente em Portugal, eventos ditos promocionais da mesma, numa perspectiva festivo-comercial do Fado. Tendo em conta o que, e de uma forma bem explícita, é estabelecido na Convenção, tal seria ilusório e contraproducente: na avaliação das candidaturas a Património Cultural Imaterial da UNESCO não há claques, há apenas critérios.

Com isto não se pretende naturalmente dizer que não se faça nada, muito pelo contrário. Seria excelente - é uma sugestão que já fiz - aproveitar a ocasião para se desenvolverem, na UNESCO e em Paris, acções de afirmação e de projecção da cultura portuguesa.

O potencial do que se poderia fazer é imenso, na perspectiva de ligar a tradição do Fado ao perfil cosmopolita das artes no Portugal de hoje. Seria extremamente fácil, com esse objectivo, estabelecer um programa de acções bem integradas que, durante três ou quatro meses, mobilizasse nomes fortes, não só da criação portuguesa mas também da cultura global: na música ou no teatro, na dança ou na moda, na pintura ou na fotografia, no cinema ou na literatura.

Algumas dessas ideias - na sua maior parte quase sem custos e com evidentes benefícios para o País - têm vindo a ser preparadas. Mas a sua concretização depende, naturalmente, não só do Ministério da Cultura mas sobretudo do patrono da candidatura, a Câmara de Lisboa, a que essas ideias foram já, no tempo certo, apresentadas.

Seria uma excelente ocasião para, na linha das análises e das propostas contidas no recente estudo de Augusto Mateus sobre as potencialidades económicas do sector cultural português, se reforçar a aposta na sua exportação e na sua penetração externa. A candidatura do Fado a Património Cultural Imaterial da UNESCO poderia assim, para lá da sua consagração, marcar um significativo, talvez mesmo histórico, momento na acção cultural externa da República Portuguesa.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt