Identificada em vários museus europeus como oriunda de Hamburgo, a originalidade e a qualidade da faiança portuguesa produzida na primeira metade do século XVII tarda em ser reconhecida. Para reivindicar o lugar que esta arte nacional deve ter na história europeia, os galeristas Philippe Mendes e Mário Roque juntaram-se na organização de uma exposição que reúne cerca de 60 peças, entre jarras, garrafas, taças, potes, mangas de farmácia, pratos de aparato, painéis de azulejos, com um gosto marcadamente oriental, produzidos para uma clientela abastada, em Portugal e no estrangeiro..Logo nas primeiras páginas do catálogo que acompanha a exposição Un Siècle en Blanc et Bleu, o historiador de artes decorativas, José Meco, exibe os pergaminhos da faiança portuguesa desse período: "Uma das manifestações decorativas mais originais e criativas da arte portuguesa", resume. "Apesar de atualmente ser pouco conhecida no estrangeiro, teve enorme difusão internacional no início do século XVII e teve repercussões essenciais no desenvolvimento da cerâmica noutros países, sobretudo na Holanda", salienta ainda o especialista..Mário Roque alinha pelo mesmo tom: "Há várias coisas muito interessantes sobre a faiança portuguesa desse período e que são completamente desconhecidas, tanto no estrangeiro como em Portugal", assinala. E começa a desfiar: "Portugal, no século XVII, foi o principal produtor de faiança e fornecemos toda a Europa. Porque, no início do século XVII, Portugal era a grande potência europeia, toda a Europa estava com os olhos postos em nós, que então ditávamos a moda. Tudo o que se fazia em Lisboa, o resto da Europa também queria fazer. E por cá, tínhamos o grande fascínio pelo que se passava no Oriente e tudo o que era exótico estava na moda em Lisboa." O galerista lembra que "nessa altura chegavam a Lisboa as porcelanas da China, porcelanas essas que, por um lado, tinham um preço muito caro, não sendo acessíveis a toda a gente; por outro lado chegavam em quantidades muito reduzidas"..Numa reação à elevada procura de porcelana chinesa, "os oleiros portugueses, para sobreviverem, começaram a produzir em Portugal, sobretudo em Lisboa, faiança de grande qualidade (era uma pasta fina, e com um esmalte de altíssima qualidade, bem como a pintura), copiando o que vinha da China"..Ao copiarem as decorações chinesas, "criaram-se na faiança portuguesa as primeiras chinoiseries. O que não deixa de ser engraçado porque toda a gente tem a mania que a chinoiserie é uma coisa do século XVIII que os franceses inventaram", conta Mário Roque..Uma invenção que teve várias consequências: acabou com o domínio dos italianos no comércio de faiança no mercado europeu, com a majólica, e acabou por levar à criação da fábrica de porcelanas e azulejos de Delft, na Holanda. Por uma razão muito simples: face à grande procura por estas peças no Norte da Europa, onde estavam radicadas importantes comunidades de famílias de judeus expulsas de Portugal no final do século XV, revelou-se mais barato criar uma fábrica do que importar de Portugal..De Hamburgo? Não, de Lisboa.De qualquer modo, foram muitas as encomendas que os oleiros portugueses receberam nessa primeira metade do século XVII, personalizando as peças com as armas e as iniciais dos clientes, oriundos sobretudo do Norte da Europa. "O fenómeno mais interessante dessas exportações é o grande número de peças encomendadas a Lisboa por Hamburgo no século XVII. Eram geralmente designadas como "faiança de Hamburgo", sendo consideradas de produção local, até que Luís Keil, conservador do Museu Nacional de Arte Antiga, contrariou esta atribuição, num artigo publicado em 1938", explica José Meco..Nesse trabalho, Keil demonstra que os símbolos heráldicos, as imagens e os nomes de família de Hamburgo que decoram esses objetos surgem igualmente em fragmentos de porcelana encontrados em escavações realizadas em Lisboa. Uma descoberta que só foi divulgada e aceite pelos historiadores a nível internacional quase seis décadas mais tarde, através da exposição Lissabon - Hamburgo, Fayenceimport für den Norden, realizada em 1996 no Museu de Hamburgo..Contrariar esta "verdade" com quase quatro séculos é um dos objetivos desta exposição que o galerista lusodescendente Philippe Mendes inaugurou precisamente no mesmo dia em que foi exposto numa das salas do Museu do Louvre o quadro Maria Madalena Confortada pelos Anjos, de Josefa d"Óbidos (1630-1684). Philippe Mendes comprou a pintura num leilão da Sotheby"s, em Nova Iorque, por 238 mil euros, para o doar à instituição francesa, que passa assim a contar com três telas portuguesas. Mais um degrau no caminho da realização de um sonho de Philippe Mendes: a criação de uma sala de pintura portuguesa no Louvre..Informação útil.Un Siècle en Blanc et Bleu: Les Arts du Feu dans le Portugal du XVII Siècle.Galeria Mendes, Rue de Penthièvre, 36, Paris.Até 30 de janeiro. Segundas, das 14.00 às 19.00; de terça a sexta, das 11.00 às 19.00