Eternamente adolescentes

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Os protagonistas do cinema actual estão proibidos de envelhecer

Os nossos pais e avós foram cinéfilos fascinados por heróis destemidos, elegantes e... adultos. Ouvimo-los falar de Errol Flynn e Tarzan (aliás, Johnny Weissmuller), das proezas de John Wayne nas paisagens do Oeste americano ou da frieza elegante de Humphrey Bogart nas noites enigmáticas de Casablanca. Mais recentemente, até já há pais que transmitiram aos filhos o fascínio pelo aventureiro de chapéu e chicote, mais conhecido por Indiana Jones (aliás, aos 65 anos, de novo sob a direcção de Steven Spielberg, Harrison Ford está a rodar o quarto título da respectiva saga).

Mas os tempos mudaram. A predominância de espectadores adolescentes nas salas de cinema tem favorecido uma generalizada "infantilização" das histórias e das personagens. Dito de outro modo: alguns dos mais conhecidos heróis cinematográficos da actualidade são eternos adolescentes que, em nome do espectáculo, estão proibidos de envelhecer.

Harry Potter, o jovem feiticeiro criado nos livros de J. K. Rowling, é o exemplo mais evidente. No seu quinto filme (Harry Potter e a Ordem da Fénix), é notório o esforço para contrariar as marcas do "envelhecimento" do protagonista Daniel Radcliffe (que na segunda-feira, dia 23, festejará os seus 18 anos). Aliás, a promoção do filme tentou mesmo criar algum suspense em torno daquele que é, para todos os efeitos, o primeiro beijo cinematográfico do herói: os seus lábios tocam de modo muito breve os lábios de uma colega e o menos que se pode dizer é que nem os arautos da decência moral ficarão ofendidos, nem a história de Harry Potter vai mudar por causa de tão casto impulso sentimental.

Entretanto, anuncia-se o regresso do mais "adulto" dos heróis "infantis" (e as repetidas aspas são mesmo necessárias para lidar com o seu comportamento não muito exemplar...). Aliás, é uma verdadeira estreia: Bart Simpson, rebento rebelde da família mais conhecida da cidade de Springfield, vai aparecer na primeira longa-metragem cinematográfica de Os Simpsons (com estreia mundial marcada para o dia 26). Se os produtores de Harry Potter nos prometiam um beijo, os criadores dos bonecos amarelos dos Simpsons anunciam-nos algo menos romântico: o filme vai mostrar o sexo de Bart. Apetece dizer que será como uma simples viragem de 180 graus: afinal de contas, tanto Bart como Homer, o seu pai que não prima pelo génio pedagógico, passam a vida a baixar as calças e a expor os respectivos traseiros (coisa de má educação que, valha a verdade, a nossa vocação liberal tende a receber com risos cúmplices e mal disfarçada concordância).

Provavelmente, tudo isto tem uma origem muito concreta ligada a um dos nomes de referência do moderno entertainment: o senhor George Lucas que, apesar dos seus respeitáveis 63 anos, tendemos a imaginar e descrever como um ado- lescente militante, continuamente empenhado em fabricar mundos regidos pelos desejos e utopias dos mais novos. Na verdade, terá sido a sua saga de A Guerra das Estrelas, iniciada em 1977, que trouxe para o cinema (e, mais do que isso, para a cultura popular) novos modelos de heróis tocados pela graça de uma juventude, se não física, pelo menos simbólica.

Nesta perspectiva, Harry Potter e Bart Simpson são heróis de um mundo de espectáculo que, por assim dizer, foi criado à imagem da sua própria juventude. As suas semelhanças serão tanto mais significativas quanto nascem de duas vias de expressão tão opostas quanto podem ser os actores de carne e osso e os desenhos animados. Com um paradoxo que vale a pena assinalar: Harry tende para o delírio da fantasia mais ou menos "transcendental", enquanto Bart vive num universo rasgado por problemas tão graves como a delinquência, o alcoolismo ou a degradação do ambiente. Afinal de contas, o realismo também se pode desenhar.

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