Esta noite choveu neve / Caiu a folha ao feijão

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Sábado, 14 de Maio

Percorremos o trilho da Rocha do Chambre, nós e os cães, e uma sensação de desperdício acompanha-nos. Seguimos pela bagacina e pelo basalto, atravessamos as criptomérias centenárias e o leito de uma ribeira, escalamos a encosta norte do Axis Mundi e, antes de descermos pela laurissilva e os cerrados, detemo-nos no miradouro rústico, contemplando nada.

Já não chove há um bocado, mas um manto leitoso de nevoeiro desceu sobre a paisagem. Mal nos conseguimos descortinar uns aos outros, e de modo nenhum podemos ver a Caldeira aos nossos pés, estendendo-se até à serra do Cume e ao mar.

E eu penso no casal que vimos na véspera, ao final de outra caminhada ainda, menos épica. Descíamos da Falca para os Viveiros, através das matas de cuneiformes, musgos e líquenes, e de repente um casal abraçava-se, com um ar romântico, sob a copa de uma bétula.

Ele vestia umas calças de mau corte, retesadas à volta do corpo farto, e trazia um boné à Ricardo Quaresma. Ela usava uma saia vaporosa e, apesar do frio, um top minúsculo - pouco mais do que um soutien -, de modo a realçar a sua barriga de grávida em último grau, e à volta da qual ia sacudindo os longos caracóis ruivos com que escondia refegos com mais de nove meses.

À frente deles, uma mulher apontava-lhes uma objectiva, com ar profissional. Mandava-os mudar de posição, disparava uma vez ou duas, reactualizava as ordens. E eles tornavam a abraçar-se, apesar dos tremores e de toda aquela carne - mas, mesmo assim, abraçando-se por completo, amável e irredutivelmente.

A Catarina vai amanhã para Lisboa, e o nosso momento era o desta manhã, no miradouro rústico. Ríramo-nos um pouco do casal da véspera, mas na verdade queríamos tirar a nossa fotografia também - com os cães, com a Caldeira e com a nossa própria ideia de futuro. Não havia tanta diferença assim entre nós e eles, a não ser que eles venceram o frio e nós tombámos perante o nevoeiro.

Domingo, 15 de Maio

Concerto do António Bulcão, ontem à noite, com o Ricardo Dias, o Bernardo Moreira, o Mário Delgado e o André Sousa Machado. Senti inveja, e, quando me vinha embora, pelas freguesias, passados os parabéns ao Bulcão e o copo com a banda, pus o Paolo Conte e cantei alto.

Depois pus o Mário Rui. O Brel. O Carlos do Carmo. Cantava e, quanto mais cantava, mais alto me apetecia cantar, o som do leitor de CD no máximo já - e o Ray Lamontaigne, e o Gainsbourg, e o Carlinhos Medeiros, e o Tom Waits mais os anos selvagens de Frank.

Deu-me ideia de que estava a precisar de uns dias na cidade, também eu. Mas na cidade eu nunca cantava, e, quando o CD chegou ao fim, meti outro e cantei de novo, freguesia atrás de freguesia, até estacionar aqui à frente e parar a fumar um cigarro, olhando a lua que começava a vencer o nevoeiro.

***

Às 15.55 pus o telefone em modo de voo e liguei um filme que queria ver. O filme era menos interessante do que o esperado, mas consegui manter-me atento o suficiente para aguentar até quase ao fim.

De cada vez que um carro apitava na rua, eu perguntava-me quem tinha marcado. Ninguém apita aos domingos, aqui à frente. Mas, mesmo assim, mantive o telefone desligado, sem notificações ou mensagens.

Às 17.45 não aguentei mais. Peguei no telefone. Estava 4-0 em cada campo, afinal, e eu fiquei a olhar para aquilo, num misto de desolação e surpresa, perplexo porque, apesar de tudo, alguma esperança resistira em mim.

Liguei aos amigos do Benfica e perguntei-lhes onde estavam. Fui sentar-me ao seu lado, pedi uma fresca para mim também e fiquei ali a ouvi-los gabarem-se.

Pagaram eles.

Segunda-feira, 16 de Maio

É dia do Espírito Santo e da Autonomia, da Pombinha e da tourada da Terra Chã, e eu paro em várias casas até chegar à do João de Brito. À chegada, o Zeca Freitas apresenta-me o Jorge Gato e este diz-me as suas quadras:

Do povo nascem os poetas
Com cantigas a rimar
Fizeram-lhe a cama curta
E ele acordou com os pés de fora

Esta noite choveu neve
Caiu a folha ao feijão
Vê se te levantas cedo amanhã
Que é dia de trabalho

Ia uma mulher pela Terra Chã abaixo
Vinha um homem pela Terra Chã acima
Levou com uma pedra nas costas
Coitado de quem passa as dores

Ao meu lado, o Zeca está numa gaitadaria:

- Eu já ouvi isto mais de 300 vezes e continuo a rir-me sempre!

E eu não sei se é da poesia do Gato, ou do riso do Zeca, ou das aguardentes do João de Brito, ou da conversa noite dentro com o Rodrigo e o gangue. Mas cheguei a sentir uma certa pena de, efectivamente, ter de ir passar agora uns dias na cidade também - logo agora, que isto estava a aquecer.

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