Escrutínio e voyeurismo

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A questão da exposição da vida privada das figuras públicas há muito vem sendo debatida. Desde o campo das artes, ao desporto, à ciência e à política, há um certo prazer por parte do público em conhecer a vida privada das figuras públicas. Este deleite tem sido muitas vezes explorado pelos media com fins comerciais, como se sabe, dando origem a um filão económico de revistas, biografias, entrevistas e documentários, que pouco devem ao respeito pela privacidade. Para combater a saturação com os vários formatos existentes, eis que surgiu até o reality show em que se assiste ao processo de fabrico de uma figura pública, pela exposição da intimidade de um indivíduo desconhecido.

Também não é novidade que esta exposição tem, por vezes, um efeito perverso. Há vários exemplos de figuras públicas, sendo as ligadas ao espetáculo e às artes as mais afetadas, que sucumbiram sob a pressão da devassa da sua vida.

Os políticos também são alvo da atenção do público. Mas há várias especificidades que estão associadas a essa atenção. A primeira será sempre a de que se no caso das figuras públicas ligadas às artes e ao espetáculo o escrutínio público é consentido, por vezes até incentivado pelas próprias, em busca de notoriedade, no caso de quem está ligado à vida política raramente o é. Essa diferença, que à partida passa despercebida, pode fazer toda a diferença.

Ao longo da história, a chamada "esfera pública" cresceu e absorveu o gigantesco palco virtual que conhecemos hoje, com a vitalidade que as novas tecnologias da comunicação e as redes sociais lhe conferem. Estes avanços tecnológicos trouxeram também efeitos perversos - com o aumento da eficácia do escrutínio da vida privada vieram também a produção e propagação de verdades distorcidas ou mesmo factos falsos. Longe vai o tempo de A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco. Como seria recebido o transmontano Calisto Elói hoje? Por via das redes sociais, não haveria asas que salvassem o desgraçado de cair, certamente, com muito mais estrondo...

Pode brandir-se, em questões de escrutínio da vida privada de pessoas ligadas à política, o velho "quem não deve não teme" e acreditar que esse espírito inquisitivo por parte do público é prova de liberdade. Esse argumento é, no entanto, invalidado pelo simples facto de que já existem instituições que se encarregam de monitorizar os aspetos relevantes da vida privada de um político para as funções que desempenha. O discricionário voyerismo não acarretará o perigo de trazer algum descrédito a essas instituições democráticas decretando a sua inoperância e subalternância perante interesses circunstanciais, económicos ou não, imunes ao escrutínio, que comandam o espaço mediático? Talvez seja necessário refletir coletivamente sobre a fronteira entre a vida social pública inerente às funções que desempenham as pessoas ligadas à política e a vida privada a que, como cidadãos, têm direito. Pois a devassa pode ter também ela, afinal, um efeito perverso para a própria democracia: afastar pessoas sérias e válidas da prática política, para protegerem a sua privacidade e os seus.

Todos estamos conscientes de que a necessidade de levar uma vida privada que não contradiga aquele que é o seu discurso político se agudiza para quem dedica a sua vida à política. Em todos os aspetos da nossa vida, a coerência entre o que se faz e o que se defende é um valor insubstituível. Os políticos devem estar mais conscientes de que essa coerência, mais do que um imperativo ou um preço a pagar, tem de ser entendida como um requisito.

Se assim for, o debate político continuará onde nunca deve deixar de estar, livre de episódios e de casos menores, e centrado no que faz verdadeiramente a diferença na vida das pessoas.

Maria Antónia de Almeida Santos

Deputada do PS (Escreve de acordo com a antiga ortografia)

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