Época de caça

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Um destes dias, não me perguntem porquê, violei uma das regras essenciais da decência e liguei o televisor durante a manhã, para cúmulo sintonizado num canal nacional. Pior ainda, fiquei a ver. O programa em causa consistia num "fórum" dedicado ao eventual agravamento das restrições ao tabaco, com moderadora e convida- dos em estúdio e espectadores ao telefone. A maioria destes escorria ódio.

O ódio não era endereçado aos responsáveis pela crise económica ou a estações televisivas que preenchem a programação com intervenções de gente não remunerada: era endereçado aos fumadores. Segundo percebi, esta subespécie ocupa o topo na lista das criaturas repugnantes, imediatamente antes da lampreia e do peixe bolha. Não só desrespeitam os demais como os sujeitam, por pura crueldade, aos malefícios do fumo. Não só arruínam a saúde própria e alheia como se revelam esteticamente nocivos, ao praticarem o seu imundo vício à porta de estabelecimentos privados e edifícios públicos. Não só são um perigo como devem passar a ser um alvo, perseguido, capturado e exibido em jaulas sem cinzeiro.

É verdade que também apareceram espectadores avessos ao reforço da proibição do tabaco, embora apenas na medida em que preferem prevenir outras doenças e proibir outras calamidades: os automóveis, as gorduras, os fritos, a exposição solar, etc. Sem vestígios de ironia, a moderadora do programa achou "engraçado" (cito) que o debate de uma interdição seja capaz de inspirar resmas de interdições adicionais. Desde que se impeça alguém de fazer alguma coisa, estamos todos de acordo.

Todos, incluindo os responsáveis pelo estudo que motivou o referido "fórum". O estudo, realizado pela Faculdade de Medicina de Lisboa e financiado pela Direcção-Geral da Saúde, não passa de uma rajada de simpáticas "recomendações": proibido fumar nos restaurantes e afins que se mantiveram espaços de fumadores; proibido fumar nos restaurantes e afins que criaram espaços parciais para fumadores; proibido fumar no exterior (no exterior!) dos restaurantes e afins; proibido atender em restaurantes e afins indivíduos que fumaram um cigarro nas seis horas anteriores.

A última "recomendação" é invenção minha. Porém, é provável que em breve venha a ser lei, já que o gozo da caça está no processo, não na perdiz estufada: estes avanços civilizacionais acontecem por fases para permitir que o prazer de subjugar o próximo se repita periódica e redobradamente.

Conforme nos explicaram à época, as normas impostas em 2008 removiam os fumadores do contacto com os cidadãos inocentes e resolviam o problema. Conforme se previa, as normas não pretendiam resolver problema nenhum. Resignados à intromissão brutal na propriedade que julgavam pertencer-lhes, os donos dos restaurantes e cafés que não faliram devido à falta de clientela investiram nos sistemas de extracção do fumo que as autoridades prescreveram, fiscalizaram e aprovaram. Passados quatro anos, descobrem que o dinheiro gasto só pagou o divertimento dos fanáticos. Agora, os fanáticos querem mais. Vão sempre querer mais. Por definição, os fanáticos são assim, são imensos e, dado que não pecam, nunca morrem.

Manuela Ferreira Leite padece de dois problemas. Um é a falta de clareza naquilo que diz. O outro é a falta de noção de ridículo dos que interpretam o que diz. É pena. Sobretudo porque as opiniões da senhora, embora nem sempre emitidas no português mais linear, representam uma reserva de lucidez quase inexistente num meio em que a dissimulação é estado de espírito.

No tempo em que liderava a oposição, a dra. Ferreira Leite fartou-se de avisar para o buraco em que o país acabou por cair. Apesar de a realidade lhe ter dado razão, o que a memória guarda dos avisos é a histeria subsequente a cada um, devidamente truncado e reduzido ao grotesco. Hoje, quando a dra. Ferreira Leite não lidera coisa nenhuma, continua a ser das poucas pessoas a notar a tendência do actual Governo para reduzir o défice à custa do contribuinte e não à custa do Estado. Escusado dizer, a tendência passa incólume, mas as limitações orais da dra. Ferreira Leite e os inevitáveis gritinhos de repulsa, não.

O mais recente "equívoco" aconteceu num debate televisivo, no qual a dra. Ferreira Leite quis dizer que o SNS só poderia manter-se gratuito para alguns se outros o pagassem, disse que, caso contrário, os insuficientes renais arriscariam perder a hemodiálise subsidiada e foi citada como tendo dito que os velhinhos doentes deviam morrer e pronto.

Seguiu-se o habitual concurso para apurar quem insulta a dra. Ferreira Leite com maior violência, prova que invariavelmente termina com a satisfação de todos os participantes. No fundo, trata-se do popular "bater no ceguinho", excepto que, no caso, a senhora costuma estar certa e cegos são os que preferem a patranha, ainda que perigosa, à respectiva denúncia, ainda que confusa.

É ridículo que Álvaro Santos Pereira tenha ido à conferência do DN "Made in Portugal" sugerir, a título de exemplo, o franchise global dos pastéis de nata? Não acho, mas a "inteligência" indígena irrompeu em imediata galhofa. É razoável que, na mesma ocasião, o dr. Santos Pereira se aliviasse de frases ocas acerca do "orgulho" em ser português, da "aposta" nas exportações e da "estratégia" de internacionalização? Não acho, mas a "inteligência" indígena tipicamente ignorou tamanhos clichés. É por isso que, por cá, a inteligência anda sempre entre aspas.

Toda a gente se ri de uma ideia plausível, ou pelo menos tão plausível quanto a dos italianos que lançaram a cadeia de cafés Costa, a do americano que inventou a Kentucky Fried Chicken ou a do mexicano que difundiu o H1N1. Ninguém acha piada a que um homem adulto se afirme patriota. Ninguém acha absurdo que, num regime dito democrático, um governante pretenda orientar as massas acerca dos passos que devem ou não devem dar. Ninguém acha estranho que haja um ministro da Economia.

A culpa do dr. Santos Pereira é apenas a de reproduzir os tiques comuns aos seus antecessores e não perceber a contradição entre apelar à iniciativa individual e, simultaneamente, teimar nas "apostas" e nas "estratégias" em que o fatal Estado possui a última palavra. Talvez porque muitos empresários insistem em ser salvos pelo Governo, o Governo insiste em salvar os empresários, donde os "apoios", os "fundos", os "incentivos", os "programas", os "quadros" e, preferência pessoal, as divertidas excursões de estadistas e "agentes económicos" a tiracolo, que sem notarem o paradoxo rumam regularmente ao estrangeiro a fim de espantar os locais com o nosso "empreendedorismo" e o nosso descaramento. Na conferência do DN, o dr. Santos Pereira anunciou visita próxima ao Magrebe.

E para quê, Deus meu? Para engrossar a lista de falhanços patrocinados pela crença de que compete aos poderes públicos "dinamizar" os interesses privados em vez de, simples e literalmente, desamparar-lhes a loja. A lista é longa e próspera. Há dois anos, os noticiários babavam fervor nacionalista ao descrever a actriz da série Mad Men que desfilou na cerimónia dos Emmy vestida por uma marca portuguesa, naturalmente subsidiada para conquistar a Terra. Esta semana soube-se que a marca em causa faliu, soterrada em dívidas às entidades que lhe sustentaram o capricho. Chamava-se Papo d'Anjo, que também é nome de doce. Como o pastel de nata, cujo franchise aliás já existe na Ásia, a cargo de um inglês que fez pela vida e espantosamente dispensou as estratégias do sr. ministro.

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