Entrevista a Carlos Mendes
Anda às voltas com uma recolha inédita de um cancioneiro esquecido [As Vozes do Trabalho]. O que está a fazer?
Quando cheguei aqui, ao departamento de Cultura da Fundação Inatel, a minha única ordem foi dizer às pessoas que tinham de ser criativas. É um defeito da profissão de arquitecto, criar geometrias. Graças à percepção desta abertura à transversalidade, apareceu-me uma menina, muito tímida e medrosa, a contar-me que gostava de fazer uma coisa. Que era giro fazer-se um espectáculo chamado As Vozes do Trabalho, criado a partir de sons tirados da monda, da faina, da vindima, etc. Eu limitei-me a dar-lhe ouvidos e a conduzir.
É trabalho na linha de um Michel Giacometti [etnomusicólogo corso que fez das recolhas musicais mais importantes em Portugal] ou de um Fernando Lopes Graça?
Modestamente, podemos dizer que sim. Quem tem feito esta pesquisa notável é o investigador José Alberto Sardinha [J.A.S.]. Para além do que estava feito, o J.A.S. foi aos avós e às pessoas que ainda se lembravam como se cantava nos campos. Da apanha da azeitona ao namoro. há coisas engraçadíssimas. Na Beira, por exemplo, o relato das gentes que andavam de uma vertente para a outra nas artes do galanteio. Comecei a ouvir aquilo com espanto, mas cheguei à conclusão de que ao fim de um quarto de hora a ouvirmos esta música pungente adoecíamos. É preciso ver que esta música nunca saiu da rua para uma sala de espectáculos. Era fastidioso para comercializar. Embora haja cânticos lindíssimos. De maneira que para isto chegar ao grande público entendemos juntar-lhe a componente teatral e a dramaturgia. Como sou um amante da ópera, da opereta e dos musicais decidi ir por aqui. Vai estrear [em data a anunciar para o início de 2010] no recém-restaurado Teatro da Trindade e tem o título de Ópera Etnográfica. Ou seja, para além de mostrar os elementos etnográficos vamos introduzir a componente de orquestra, não do tipo convencional mas com gaitas-de-foles, bombos, ferrinhos…
O «garimpo» está feito?
Está feito e em fase de selecção.
Qual vai ser o seu papel, o de cantor lírico at last?
Vou ser o «arquitecto», o deus cósmico. Não será uma manta de retalhos. Vai ter uma manta narrativa e outra musical. Tem muito que ver com a vertente do Giacometti – que desenvolveu o seu trabalho aqui, na antiga FNAT, enquanto director cultural –, daí ter convidado o investigador J.A.S., que além disso é professor e advogado mas não se coíbe de andar sempre com o gravador na mão. A presença de J.A.S. é um garante de que não haverá minhotas com socas de plástico ou assim. A verdade histórica é muito importante. Vamos incluir, por outro lado, um repertório que já pertence ao Inatel, em que entram as janeiras, as alvoradas, as canções de roda… De tudo o que ouvi do repertório de As Vozes do Trabalho, a maioria são temas pungentes, mas admiráveis. Por exemplo, os cantares polifónicos da apanha do linho. A maioria das canções foi escrita por autores populares anónimos. Já agora, para aproveitar as divulgações em primeira mão, preparamos novos prémios, de Etnografia e Música, com os nomes do Giacometti e do Lopes Graça, e mais um de Bandas com o de Joly Braga Santos.
Acha que esta recolha de vozes pode ajudar a desconstruir o mito da superioridade do fado enquanto registo maior do cancioneiro nacional?
Acho que sim. Por acaso, estamos de momento a patrocinar uma série de tertúlias no Teatro da Trindade (arrancam a 5 de Novembro, todas as quintas-feiras) em que se vai discutir essas temáticas. A primeira será sobre o teatro de revista. Se ainda vale a pena, se ainda existe a canção portuguesa ou de Lisboa, uma canção que de resto eu próprio fiz com o Sérgio [Godinho], o Fernando [Tordo], o Vitorino. Dia 12 de Novembro haverá, quanto a mim, a grande conversa sobre o fado. Chama-se «Tudo Isto é Fado?» e vai levar à consideração se o fado é nacional, de Lisboa, brasileiro ou é apenas uma palavra-símbolo. Na mesa vão estar o Rui Mota (moderador), os investigadores José Alberto Sardinha e Daniel Gouveia, e a cantora Cristina Branco. A minha opinião, não tendo nada contra o fado, é que é uma música limitada enquanto modelo de música tradicional. Depois, o que se faz agora não é esse fado e há um exagero e sobrevalorização enquanto música. Oiço fados cantados pela Mariza, a Cristina Branco ou o Camané e aquilo, para mim, não é fado. Tira-se a guitarra portuguesa e é outra coisa. Se puser um cavaquinho ou uma gaita-de-foles o que acontece? É facto que o fado é nosso, tão nosso como os cantares do linho, o cante alentejano ou estas canções do trabalho. O fado tomou a frente há menos de dois séculos. Mas há pessoas que vivem muito intensamente esta aflição do que é português e do que não é. Para mim, a música é universal. É evidente que temos raízes e o que ouvimos em miúdos ajuda à construção. No meu caso fui buscar músicas como o José Embala o Menino ou cantares de Trás-os-Montes e introduzi-lhes acordes de jazz.
Não há então uma sonoridade que se possa dizer mais portuguesa?
Não. Há é música tradicional. Dificilmente um coral alentejano passará por espanhol. Ou o cantar da velhota na nora gigante que aparece no filme do Giacometti, agarrada a um pau, a puxar a água. Os fados do Marceneiro são uma sonoridade portuguesa. Mas essa é uma preocupação para os etnomusicólogos, mais do que para mim enquanto compositor ou artista.
O Inatel é um dos principais agentes culturais do país?
Há meios e força de vontade para ser um agente muito relevante, um pilar. O departamento de Cultura do Inatel deve ser um promotor e dinamizador da cultura tradicional e da cultura popular amadora. Ou seja, os nossos Centros de Cultura e Desporto [CCD] são comparáveis ao que nos meus tempos de miúdo se chamava sociedades recreativas. Era aqui que tudo nascia. Era uma escola de cidadania. Não percebo por que deixaram de ser.
Por causa dos rótulos de piroso, foleiro…
Por isso e porque há televisão democratizada. Há que criar novos interesses para o desenvolvimento deste associativismo. Essa é uma das missões do Inatel. Nas minhas rondas nacionais tenho percebido que há muito mais dinamismo do que se julga. Ainda há pouco tempo fui abrir um workshop de etnografia sobre vestuário num CCD do Ribatejo onde soube que nos vai ser oferecido um espólio de roupa. Isto tudo para dizer que as pessoas estão vivas e colaborantes. Este mundo está fechado à comunicação social, não porque esteja murado mas porque nenhum de vocês quer pular a cerca. Eu próprio quando entrei aqui, e digo-o com toda a lisura, não sabia onde é que estava. Achava, como a maioria das pessoas, que o Inatel era um mundo de velhotes ociosos. A primeira vez que ouvi falar da antiga FNAT foi para gozar. Chamavam-lhe os Famintos Nacionais Agarrados ao Tacho [risos]. É uma ideia extraordinária do António Ferro mas é um pau de dois bicos, pois servia de controlo político. Na altura, cada delegado regional era par do reino, bufo ou censor. Deixou-se abandalhar muito esta instituição. Há neste momento uma acção fortíssima de revitalização.
Quais são os trabalhos de Hércules que estão a ser desenvolvidos?
Na questão da cultura pôs-se cobro à ideia de que o Inatel era uma agência de espectáculos. Trabalhos em sintonia com os CCD num espírito de apoio do associativismo. Dar espírito crítico às pessoas. Fomentar o debate, a tertúlia, os workshops. Intensificar as escolas de lazer em que se enquadram cursos de várias índoles. Está a restabelecer-se uma relação muito rica entre os três pilares do Inatel, o desporto, a cultura e o turismo. Há uma estratégia integrada para cumprir. Outro dos trabalhos de fundo é no Centro de Documentação. Estão aqui arquivados 75 anos de registos, uma parte valiosíssima do Estado Novo, que precisam de ser postos ao serviço da investigação. Há ainda um projecto muito pessoal do presidente, que envolve a lusofonia.
É uma hipérbole dizer que o seu trabalho é equiparado ao de um ministro da Cultura?
É excessivo, mas há quem diga que o Inatel é o Ministério da Cultura Amadora. Este período de interim governamental [quando se fez a entrevista] não é o momento mais certo para me pronunciar, mas tem havido parcerias constantes com os governos e a tutela da Cultura. Arrisco dizer que somos o melhor parceiro que podem ter.
Gostava (também) de ser recordado por esta faceta de líder cultural e não apenas como o autor da Amélia dos Olhos Doces?
Não tenho quaisquer pretensões de ficar na história além de me dar alegrias. As coisas na minha vida foram-se sucedendo espontaneamente, e por acaso foram deixando rasto. Aqui só poderei marcar enquanto parte de um colectivo. Esta equipa é extraordinária e vai decerto ajudar-me a promover tudo isto de que temos estado a falar. Sairia contente se deixasse as bases do Centro de Documentação, onde pontua um homem de excelência chamado Baptista de Sousa. A minha atitude é de aprovação e valorização de ideias.
Aceitou este desafio pelo apreço ao homem Vítor Ramalho e/ou pelo ideal socialista?
Aceitei pelo Homem maiúsculo Vítor Ramalho, mas não sabia ao que vinha. Julgava que vinha tomar conta do teatro. Depois soube que era do teatro e de mais outras coisas. A possibilidade de lutar pela valorização do associativismo fascina-me, sem perspectivas comercialóides. A fasquia, quando entrou esta presidência e administração, estava muito por baixo, era o laissez faire, laissez passer. O objectivo em curso é desfazer essa inércia. É evidente que estes lugares criam muitos inimigos, mas inimigos, tenho-os desde os 17 anos.
E diz-lhes como dizia o escritor Camilo José Cela «obrigado por muito me terem ajudado na carreira»?
Exactamente.
Julgo que é assumida a sua antiga militância de esquerda. Ainda continua leal a alguma espécie de comunismo científico?
Saí do Partido Comunista em 1984 e deixei essa vertente. Estou mais ligado a um tipo de socialismo pragmático em que prevaleça a iniciativa privada. Um socialismo que use as palavras «fraterno» e «solidário». Não vejo grande utilidade no autoritarismo. E o que vi fez-me sair.
Os amanhãs não cantaram?
Não. A experiência soviética revelou-se de uma corrupção tremenda, uma violência humana. Descobrir isso deixou-me dorido. Deixei de ser filiado em partidos. Tenho independência para apoiar quem entender. Quando foram estas eleições viram-me em Santarém a apoiar publicamente José Sócrates e ficaram muito espantados. Tratava-se de evitar a ascensão da direita pura e dura. Não queria ser o coveiro da esquerda. Depois, Francisco Louçã não se parece com nada e Jerónimo de Sousa menos ainda. Neste caso, falta-lhe a grandeza cultural e intelectual de Álvaro Cunhal.
Que foi quem o fez ficar mais tempo indeciso na saída do partido?
Em parte.
Que balanço faz destes 35 anos de democracia?
Não sei se tenho capacidade de resposta. Mas uma coisa é certa: nunca pensei que depois de tudo chegássemos a uma situação de tão grande precariedade e corrupção. A seguir ao 25 de Novembro lembro-me de ouvir um iluminado dizer: «Meus amigos, entrámos na democracia. Portugal vai ser a República das Bananas.» Não se enganou por muito. Afastei-me do PC mas subscrevo a frase de que a democracia, a que está por fazer, não se faz sem o PC. Estamos a viver num mundo muito confuso. O balanço, apesar de tudo, é positivo. Venho de uma geração em que em miúdo ia passar férias (à Maia, terra onde o meu pai nasceu) e os meus primos brincavam de pé descalço e calça rachada (bastava ajoelharem-se para fazer as necessidades). Havia gente que passava frio e fome.
Isso ainda existe hoje e em números expressivos.
Voltou a fome, é facto, mas aquilo era terrível. Acho hoje mais assustador o que diz o filósofo José Gil sobre os chicos-espertos e do que isso condena o país à ignomínia e à chacota europeia. Vivemos num país onde se tens uma bicicleta e um polícia te manda parar, vais preso. Se tens uma moto, diz-te: «Venha comigo à esquadra.» Se tiveres um carro topo de gama e fores interceptado e disseres: «Não tenho documentos», o polícia diz que vais ser multado. O condutor responde: «Prove que não tenho.» O caso segue para tribunal. Quem tem dinheiro arrasta o processo e o processo acaba por ser arquivado. O ciclista incauto foi preso, o motard multado no acto ou, se tiver azar, é socado. Este sistema imoral que se montou na justiça é uma das maiores vergonhas destes 35 anos. O 25 de Abril não foi feito para ter estes tribunais, esta polícia e esta aberração jurídica. Depois temos a violência bancária, prepotente e usurária. Os bancos tratam-nos com beijinhos se lhes cheira a dinheiro. Um dia não tens dinheiro para uma prestação e mandam-te prender. Tem de reaparecer um sistema para voltar a dar ao cidadão o nome de humano. A sociedade está profundamente desumanizada.
Acha que a sua geração fracassou?
Acho que a minha geração fracassou por ser inocente. Entrámos no barco dos tontos. Depois deixámos entrar toda a gente e a certa altura fomos atirados ao mar.
Como na rábula de Panúrgio.
Exactamente. Lutámos por foi umuita coisa e as lutas deram em muito pouco.
Ir viver para Santarém há 15 anos foi um prenúncio de exílio?
Não me iria exilar para Santarém, feito Camões [risos]. A razão da saída foi muito simples. Incomodava os vizinhos com o piano. Às vezes também aparecia a polícia e quase fui preso. Já tocava com abafadores e os dedos perdiam força por não se exercitarem. Não tenho raízes em Santarém nem conto deixar.
É um músico minimamente respeitado, ou se assim fosse viveria somente da música?
Acho que sou respeitado pela malta que trabalha na área. Agora, sinto que neste momento me faltam os meios para divulgar o que faço. Não tenho uma empresa promotora ou um promotor que me venda, como já tive. Afastei-me dos discos e das editoras mas continuo a trabalhar. Sou como aquelas casas das meias muito antigas que vão vendendo umas ceroulas [risos]. Por acaso, ultimamente tenho trabalhado bastante. E isso deveu-se a uma circunstância curiosa de ter ido parar à Corunha, de onde têm vindo muitos dos convites. E cantado em circunstâncias muito diferentes das de Portugal, que é enquanto cantor lírico.
É um delírio ou podia ter dado um cantor lírico, um Carreras?
Não é uma loucura. Mas não tenho, nem terei, essa categoria. Agora, o aparelho vocal está em forma. A garganta e as cordas vocais, os nervozinhos e as cartilagens estão ao nível de um homem de 40 anos [tem 62]. Posso ainda fazer alguma coisa nessa área.
Quem o quiser ouvir faz como, vai bisbilhotar às pastagens da lezíria?
Só se quiser ter aulas de canto comigo [risos].
Não aspira, por exemplo, a escrever uma ópera teutónica, uma Valquíria ou O Anel do Nibelungo?
Já tive essas ideias megalómanas em jovem. A idade tem uma coisa fantástica: dá-nos a noção das realidades. É como beber. Aos 20 anos, interessa apanhar a «cadela» depressa, aos 60 interessa o vinho e saber bebê-lo. Mas por acaso, no outro dia, encontrei a Isabel Medina à saída de um musical e forjou-se ali uma ideia, lá para Abril. Já escrevi umas operetas infantis, o Jardim Jaleco e O Natal do Pai Natal. Tenho uma coisa preparada: A Tia Raquel e o Seu Piano Mágico. Gosto muito de trabalhar no mundo de O Feiticeiro do Oz. Na verdade, o que me faz voltar é a adrenalina, e neste momento essa só vem do canto lírico.
É tenor?
Sou, tenor dramático, tem mais densidade, não é aflautadinha. Mas comecei como barítono... O problema que tenho nos meus espectáculos habituais é que quando canto uma ária italiana o público reclama pela Amélia. Aquilo dá-me uma certa pena. Não dá para sobrepor repertórios e o canto lírico não é para microfones. Assim, canto em Espanha e em casa, para os amigos ou nos cursos.
Gostava de gravar?
Gostava. Mas isso traz o mesmo problema, que é o público fiel às minhas canções. Fico muito satisfeito mas limita-me. O que faço é quando acabo os espectáculos com A Festa da Vida, acabo lá para cima.
Quantas canções já compôs?
Umas duzentas.
As suas incursões pela representação foram uma necessidade criativa ou contingências da necessidade?
Foram uma necessidade criativa. Desde pequeno que tenho o bichinho, e tem que ver com as minhas idas à ópera. Toda a gente dizia que devia tentar, mas como nunca tive um provedor ou jeito para andar a mendigar, o sonho foi-se adiando. Um dia apareceu o convite do encenador Artur Ramos para fazer o Mourning Becomes Electra [O Luto de Electra, na versão portuguesa], do Eugene O’Neill, e disse logo que sim antes de ele acabar a frase.
Há algum papel teatral que ainda gostasse de representar?
Se fosse muito mais novo, o de Cesário Verde. O António Feio propôs-me em tempos o papel de Cyrano do Bairro Alto, uma ideia fabulosa. Gosto do gajo do Quem Tem Medo de Virgina Woolf?. Uma vez, o José Fonseca e Costa – um dos maiores cineastas deste país, diga-se de passagem – disse-me que queria fazer um filme comigo. O meu papel seria de um lenhador. Aguardo. Gostei muito de fazer de coronel Luís Navarro, um pai severo, nos Morangos com Açúcar, da TVI. Aquilo caiu que nem ginjas, pois era exactamente o meu oposto. Fui para ficar três meses e fiquei um ano e meio. O coronel estava a ter sucesso e prolongaram-lhe a vida. É claro que podia fazer muito mais, e televisão não é teatro. Tenho já feito um monólogo (só falta o texto de ligação das cantigas), um espectáculo dramático cuja trama é um cenário invertido. O público está atrás da cortina e entre a cortina e o palco está o público diante de um cenário virado ao contrário. O espectáculo começa com uma voz a dizer: «Carlos, faltam cinco minutos.» É sobre aquela cacetada que um gajo apanha quando está no camarim e fica todo a tremer. Nunca deixou de me acontecer. Senão, não era capaz de continuar. Perdia a adrenalina. Há a entrada dele, ouve-se o bruá do público e ele conta a história da sua vida. É a minha história com um bocadinho de mentira e um bom bocadinho de verdade.
Quem são os autores e cantores modernos que mais lhe interessam?
Gosto muito dos Clã. Acho graça à dicção da Manuela Azevedo. A Mariza também gosto, mas se pudesse dava-lhe um conselho para cantar as cantigas um tom abaixo senão daqui a meia dúzia de anos fica sem voz. As minhas paixões andam pela ópera, italiana sobretudo, e sobretudo o Paolo Tosti, e a chanson française, o Léo Ferré, por exemplo.
Há um comentário seu de há umas décadas: «Na altura da Eurovisão, os cantores eram muito populares. Quando regressei de um festival tive de me refugiar na quinta de um amigo em Tomar.» Ainda há esse respeito por um cantor ou está mais equiparado a um carregador de pianos?
Esse respeito público é capaz de ser mais visível como o coronel dos Morangos. Mas acho que já nenhum cantor goza dessa mística. Há um abandalhamento brutal da carreira de cantor que é duríssima. Estes concursos tipo Ídolos e companhia também não ajudam. Banalizam o cantor.
É capaz de contar a sua vida em traços rápidos?
Nem rápidos nem longos. A minha vida é muito complicada [risos]. Dividindo em infância, adolescência e homem, tive uma infância e adolescência espectaculares, uma família fabulosa. Gente carinhosa, transmontana e minhota. Nasci em Lisboa por acaso. O meu pai veio atrás da minha mãe que era filha de militares. Ela veio estudar para as Meninas de Odivelas. Em minha casa tive irmãos inteligentíssimos e cultíssimos, o que me fez ler pelos menos uns mil livros. Eram a minha audioteca. Uma vez o Mário Castrim meteu-se comigo a dizer que eu era um menino que ouvira Lord Byron no berço. Era miúdo e tinha a ideia de que Liszt, Mendelssohn ou Chopin e certas figuras da História eram visitas de casa.
Como é que veio a ideia de ser cantor?
Não veio. Foi acontecendo. O meu pai [Abílio Mendes] cantava muito bem o fado de Coimbra. Foi colega do Menano e do Bettencourt. Não há gravações mas tenho fotografias dele com capa de estudante a cantar em casa. A minha mãe foi professora de piano. O meu irmão era um excelente actor e encenador. Fui logo mergulhado no caldo. A certa altura os meus irmãos desistiam, até que a mãe ditou «este é meu». Fui para o piano, o violino. Os meus pais tinham uma frisa no São Carlos. Vi a Callas com o Krauss encostado ao varandim de orquestra em 1958, Coreli, o Becky, o Cito Goby, os gajos todos, os maiores. Quando não havia lugar na frisa cheguei a partilhar a cadeira com músicos no palco. Ter uma mãe interessada por cultura era um espanto. O meu irmão mais velho meteu-me o vício do teatro. Aos 11 anos ia com ele para o Cantinho dos Artistas do Parque Mayer. Tenho ainda uma grande admiração por uma visita assídua que era o Nicolau Breyner.
E foi para arquitectura para construir beleza?
Fui porque era bom aluno a desenho e porque gostava do aspecto das pessoas. O meu pai era médico e os meus irmãos foram para medicina. Ainda estive na alínea F, mas como tinha a imagem do meu pai a entrar em casa às oito da manhã vindo dos bancos e a sair de casa pouco depois para ir dar consultas ao domicílio, aquilo fazia-me confusão. Devia ser a herança rural e braçal dele, de mãe lavadeira e padeira – que acabaram por ir para o Brasil e ficar exageradamente bem. Era um antifascista, um maçon dessa altura, que foi perseguido e sistematicamente chumbado no acesso à carreira de professor, o seu sonho. Sofreu as consequências da convicção.
A música acabou por levar a melhor e tudo graças aos Sheiks [com Paulo de Carvalho, Fernando Chaby e Jorge Barreto]?
Acabou por levar a melhor, mas ainda tive uns anos felizes de arquitectura. Os Sheiks são um caso raro de sucesso de que pouca gente ainda hoje tem a verdadeira noção. Fomos falados no Melody Maker [o jornal de música inglês mais antigo do mundo]. O Missing You rodou por Itália, França… Éramos figuras nacionais aos 18 anos. Tipo Beatles com meninas aos gritos e maminhas ao léu para darmos autógrafos.
MOMENTOS ÁUREOS
Nasce a 23 de Maio de 1947. Em 1963, com Paulo de Carvalho, foi um dos fundadores do famoso conjunto Sheiks, grupo que abandona em 1967 para iniciar uma carreira a solo com uma versão de Penina que Paul McCartney tinha escrito para os Jotta Herre. Em 1968, vence o Festival RTP da Canção com a canção Verão e participa no Festival da Eurovisão, realizado em Londres, no Royal Albert Hall. Volta a vencer o Festival da Canção, em 1972, com A Festa da Vida, que se classifica em sétimo lugar, em Edimburgo. Em 1976 funda, juntamente com outros autores, entre os quais Paulo de Carvalho e Fernando Tordo, a primeira editora discográfica independente, Toma Lá Disco, e grava o disco Amor Combate. Em 1978, a revista Mundo da Canção atribui o prémio de Melhor Disco Infantil do Ano ao seu trabalho Jardim Jaleco. Em 1979, os Sheiks regressam para uma série de 13 programas apresentada na RTP. O grupo grava os LP Sheiks com Cobertura e Pintados de Fresco 2. Em 1986 faz a música para o filme O Vestido Cor de Fogo, de Lauro António, e para a peça O Touro, do Teatro de Pesquisa Comuna. Ganha o prémio da Associação de Críticos para a melhor música de teatro desse ano. Juntamente com Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e o maestro Pedro Osório cria, em 1989, o espectáculo Só Nós Três, que se estreia no Casino do Estoril com êxito invulgar. Em 1991 inicia aulas de canto lírico com a professora Cristina Castro. Cria a opereta O Natal do Pai Natal, a convite da RTP, para mais um Especial de Natal, que é editado em disco. Grava para a RTP o espectáculo Improvisos Carlos Mendes. A convite da Câmara Municipal de Loures e da Escola Secundária José Afonso, compõe e grava um disco de solidariedade com Timor, com letra de José Fanha. É convidado, como actor, pelo encenador Artur Ramos para integrar o elenco da peça O Luto de Electra. Em 1993 é um dos autores e apresentadores do programa Falas Tu ou Falo Eu, da SIC. Em 1994 é editado o CD Não Me Peças Mais Canções, com produção de Zé da Ponte, em que Carlos Mendes musica grandes nomes da poesia portuguesa, como Miguel Torga, Fernando Pessoa, Carlos Oliveira, Camões e Antónia Brito. O disco inclui um inédito de Mário Soares (Para Ti Meu Amor).