Entrevista a Ana Alexandre Fernandes

<p>Nem incapazes nem dependentes. Os avós de hoje não encaixam nos antigos estereótipos. Gozam de boa saúde, têm autonomia financeira, estão ou estiveram ligados a uma profissão e dedicam parte do tempo aos netos. A socióloga e demógrafa Ana Alexandre Fernandes fala sobre as grandes mudanças que ocorreram nas últimas décadas. Das famílias com quatro gerações, da multiplicação dos avós e da escassez dos netos.</p> <p> </p>
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Ser avô deixou de ser sinónimo de velhice?
Estamos a ter avós bastante mais jovens – não é que antes as pessoas não fossem avós nas mesmas idades mas hoje alguém com 65 anos é considerado muito mais jovem do que se tivesse essa idade há vinte anos. Digo 65 porque tecnicamente corresponde à idade da reforma e ao limiar da velhice, mas não significa, de todo, ser velho.

Fala-se em novos avós.
Em novos avós e em avós novos, o que são conceitos distintos. As pessoas que actualmente estão a chegar à casa dos 50 anos foram mães e pais cedo, bastante mais cedo do que as actuais gerações. Isso permite que se tornem avós numa fase ainda cheia de vitalidade. Hoje vive-se mais tempo e com mais saúde e a possibilidade de os avós usufruírem de uma reforma veio libertar tempo e recursos para estarem com os netos. A ideia de «novos avós» tem muito que ver com o facto de os avós de hoje terem um estilo de vida e um estatuto social muito próximo do dos filhos e dos netos. Houve uma aproximação de interesses e de posições, a distância entre as gerações diminuiu.

Os avós de hoje usam dinheiro de plástico, têm telemóvel, conduzem, vestem calças de ganga e ténis como os netos... Muitos não abdicam do computador nem do e-mail.
Não sei se será o retrato mais comum, mas uma coisa é certa: a figura da avó da aldeia, sentada à lareira, já não é a imagem dominante. O estereótipo da avozinha com manta e bengala corresponde quando muito à quarta geração, à bisavó, que os miúdos tratam por «bisa» para a distinguir das outras avós.

Há pela primeira vez uma geração de mulheres com profissão, activas ou recém-reformadas, que são avós e conseguem dedicar algum tempo aos netos?
Sim. As avós são, na maior parte das vezes, mulheres ainda jovens, com a sua vida própria e a sua disponibilidade comprometida. Gozam de melhor saúde e de mais recursos mas não significa que estejam sempre disponíveis para receber o netinho...

Antes predominavam as avós com baixa ou nenhuma escolaridade, sem autonomia financeira, que trabalhavam em casa.
Houve progressos mas não podemos afirmar que no nosso país as mulheres com mais de 50 anos – as actuais avós – sejam muito profissionalizadas. Predomina a baixa escolaridade e uma profissionalização incipiente. Estas mulheres tiveram pouca instrução, foram operárias, secretárias, trabalharam nas limpezas e no comércio e não tiveram grande apego à profissão. Por isso, assim que podem largam o trabalho pouco remunerado para se dedicarem à família. Segundo dados do projecto europeu FELICIE, em que participei, vemos que quase oitenta por cento das mulheres portuguesas entre os 45 e os 54 anos não tinham mais do que quatro anos de escolaridade pelo censo de 2001. É uma realidade muito diferente do que se passa, por exemplo, na Bélgica ou na República Checa, onde 75 por cento das mulheres nessa faixa etária tinham formação média ou mesmo superior.

Ou seja, a grande maioria das avós portuguesas completaram, no máximo, a antiga quarta classe.
Sim, e no caso dos homens o panorama é idêntico.

O aumento da esperança de vida faz que possamos ser avós durante muitos mais anos?
Calcula-se que a actual geração de avós possa assumir esse estatuto durante um terço das suas vidas. Discute-se muito se hoje temos ou não mais saúde. Mas não há dúvida de que existem mais dispositivos e recursos, e mais conhecimentos que nos ajudam a prevenir doenças. A longevidade aumentou e tem-se verificado um adiamento dos problemas incapacitantes.

Quatro gerações na mesma família passou a ser possível. É uma nova realidade?
Em muitas famílias os bisavós ainda estão vivos. É uma consequência do aumento da esperança de vida mas também do facto de a actual geração de avós ter tido os filhos cedo. Passou a ser algo frequente as crianças terem um, dois ou mesmo três bisavós. Mas no futuro haverá uma redução das famílias com quatro gerações se o adiamento da maternidade continuar. A idade média das mulheres quando do nascimento do primeiro filho situa-se perto dos 30 anos, e são cada vez mais as mulheres que decidem engravidar depois dos 40. E se falarmos de homens que voltam a casar, ainda é mais comum terem filhos tarde.

O que leva a situações embaraçosas...
Não se sabe se são pais tardios ou se são avós.

O recente caso de uma inglesa que foi mãe aos 66 anos confunde as idades.
É um caso de excepção, é mãe na idade de ser avó.

A tendência para o filho único e neto único vai acentuar-se?
Sim, e já vemos isso. Passámos de uma perspectiva de alargamento horizontal da família – em que os filhos eram muitos e os netos imensos – para uma nova versão de família em que o alargamento é vertical. Lembro-me, tinha eu uns 5 anos, de ir para a quinta da família com os primos todos e de ter apenas uma avó porque o avô já tinha morrido... Hoje a pirâmide inverteu-se. Às vezes temos um batalhão de avós para um ou dois netos!

O divórcio e os novos casamentos trouxeram também a multiplicação dos avós. Há quem lhes chame avodrastos.
Em rigor, não deviam ser designados assim, porque o novo cônjuge não costuma ocupar um lugar educativo e de grande afectividade para a criança, mas um lugar supletivo. Digamos que são suplentes, já que os avós legítimos continuam a existir e o seu lugar não foi deixado vago.

São avós por afinidade.
Podem ter um papel importante, só que não substituem os outros avós. O mesmo sucede quando a criança ganha uma madrasta ou um padrasto: estes não tomam o lugar do pai ou da mãe. Mas no passado não era assim. A madrasta ou o padrasto exerciam uma autoridade parental, ocupavam o lugar de alguém que tinha morrido e a conotação era muito negativa. Hoje os novos companheiros da mãe ou do pai, da avó ou do avô, não costumam ser uma autoridade parental, têm antes uma função lúdica.

Há crianças que têm quatro avós, dois bisavós e quatro avodrastos, contando com a família dos novos companheiros da mãe e do pai.
É preciso encontrar designações para estas novas realidades instituídas. Pierre Bourdieu referiu-se a esta problemática como «a família sem nome». Não conseguimos ainda dar nome a estes novos elementos da família.

A relação entre avós e netos é hoje mais próxima?
É mais lúdica, por vezes há uma grande cumplicidade nas brincadeiras entre avós e netos, mas não podemos generalizar.

Mas a noção de autoridade e dever de respeito pelos avós antes era muito vincada.
A ideia de que no passado os mais velhos eram respeitados é um mito. A autoridade da pessoa mais velha era determinada pela posição que ocupava na família. Era respeitada e temida quando havia transmissão de património e se tivesse um papel importante na posição que os filhos iam auferir. Nas famílias camponesas, o velho era o detentor das terras e da casa, que transmitia ao filho, por isso era respeitado até morrer. O mesmo sucedia nas famílias burguesas. Mas nas famílias operárias isso já não acontecia, na maior parte dos casos os velhos eram abandonados. Com a escolaridade dos filhos, esta lógica subverteu-se: os filhos deixam de depender directamente dos pais para alcançar uma posição social. Conseguem chegar lá através do esforço e mérito próprios. A escolarização que se generalizou na primeira metade do século XX veio alterar a forma como os filhos se relacionavam com os pais e a posição dos mais velhos na sociedade.

Os antigos retratos de família transmitiam austeridade...
Costumo mostrar alguns nas minhas aulas para lembrar como eram as famílias do século XIX. Temos aqueles retratos burgueses em que a mãe e o pai estão sentados, ao centro, e o filho mais velho com a nora e a criancinha ao lado, ficando os outros elementos da família em pé e em segundo plano. Estes retratos mostram bem a hierarquia de posições. As pensões de reforma vieram dar mais autonomia na fase da velhice: o que nós ganhámos foi tempo e a forma de o consumir. Já não gastamos esse tempo a trabalhar e podemos usufruir dele como entendermos. Muitos ocupam-se dos netos, como um bom desafio que lhes resta.

Mas concorda que houve um estreitamento dos laços entre avós e netos?
Penso que a grande diferença se prende com o facto de os avós terem tempo livre remunerado e de os pais terem menos disponibilidade – já que, na maioria dos casos, ambos trabalham – e como tal precisam do suporte dos avós para cuidar dos filhos. Isto, a juntar ao aumento do capital cultural dos avós e à aproximação dos estilos de vida entre gerações. Agora se isso significa que haja mais afectividade entre avós e netos, não diria tanto. Não é linear, nem a disponibilidade nem a atitude dos avós. Vemos uma grande diversidade de situações e a intensidade das relações é muito variável...

Fala-se em três categorias: avós dedicados, avós companheiros e avós distantes.
É uma tipologia possível, que distingue o modo como os avós se relacionam com os netos.

E qual será a percentagem de avós que se ocupam regularmente dos netos?
Não existem dados sobre os avós, mas temos uma estimativa das crianças. De um estudo coordenado por Anália Torres, sabemos que 28 por cento das crianças até aos 2 anos e 26 por cento das crianças entre os 3 e os 5 anos ficam com os avós. Ou melhor, com as avós, que continuam a ser mais requisitadas do que as creches. O número de crianças até aos 2 anos que frequentam as creches é inferior (22 por cento), mas a partir dessa idade há mais crianças em estruturas de ensino do que com as avós.

Ao contrário do que se poderia supor, hoje há mais avós a cuidar dos netos bebés do que há duas décadas?
Um inquérito coordenado por Karin Wall aqui em Portugal mostra isso. Antes havia menos mulheres no mercado de trabalho. As mães ficavam em casa com os filhos, não era preciso, como hoje, recorrer tanto aos familiares e a estruturas exteriores para assegurar a guarda das crianças. Não podemos afirmar que seja uma tendência: é o resultado das circunstâncias, da desocupação dos avós e da ocupação dos pais em profissões instáveis e cada vez mais exigentes. E as avós continuam a ser a opção mais barata... Mas em Portugal ainda há muitas mães que trabalham a tempo inteiro e têm a seu cargo os filhos pequenos, porque não têm outra alternativa.

Curiosamente, o Norte é a zona do país onde há mais avós a cuidar dos netos e a região de Lisboa regista a maior percentagem de crianças em creches.
Tem que ver com vários factores. Desde logo, as distâncias na Região de Lisboa e Vale do Tejo são enormes, enquanto no Norte tudo funciona a um nível micro: há mais proximidade, as habitações são unifamiliares, os filhos constroem a casa perto dos pais e isso favorece um sistema muito mais equilibrado de entreajuda. Com o aumento do desemprego, muitas avós ainda jovens acabam por ter uma disponibilidade forçada e estão livres para dar apoio aos netos.

O governo está a investir no alargamento da rede de creches mas não tem considerado soluções alternativas que passem pela família.
Os países nórdicos investiram durante anos nos equipamentos de apoio à primeira infância e têm a maior taxa de cobertura de creches. Também apoiam as mães que decidem ficar em casa a tomar conta dos filhos, mas esta medida gerou polémica por, na prática, afastar as mulheres da profissão. O esforço tem sido agora no sentido de conciliar o emprego e a família, o trabalho em part-time é também muito frequente nestes países. Há muitas modalidades possíveis...

Na Noruega o Estado incentiva que as crianças fiquem em casa com familiares. Para além do cash benefit atribuído ao bebé, quem se ocupa de crianças com menos de 7 anos, como trabalho não remunerado, soma pontos que têm efeito no cálculo das pensões. Ou seja, tomar conta dos netos conta para a reforma.
Isso é extremamente positivo! É transpor a protecção da criança para o aconchego do lar, permitindo àquela pessoa que cuida da criança usufruir dos benefícios como se estivesse a trabalhar. Seria bom que olhássemos seriamente para medidas como essa. 

Há mais avós maternas do que paternas a dar apoio aos netos?
Os inquéritos apontam nesse sentido, mostram que a entreajuda é mais forte do lado da família materna. Referindo um estudo do sociólogo Pedro Vasconcelos, as ajudas nos cuidados às crianças são muito maiores do lado da família da mulher (65 por cento) do que da família do homem (34 por cento). E se compararmos todos os tipos de ajuda, desde o apoio financeiro ao auxílio nas tarefas domésticas, vemos que a família materna é muito mais empenhada.

Os laços em família são, de um modo geral, reforçados pelo lado feminino...
Há uma maior solidariedade entre as mulheres, seja entre mãe e filha seja entre nora e sogra, no que se refere a assuntos de família. Mas voltando ao papel da família materna, hoje verifica-se um reforço das relações matrilineares. Há muitas mães (já bisavós) a viver em casa das filhas (avós), como constatei em estudos que fiz. Mas não terá sido sempre assim. No passado, a organização familiar fazia-se pelo lado masculino: como havia transmissão de património, a mulher era acolhida na casa do marido e as relações com a família paterna eram privilegiadas.

O apoio aos netos, por um lado, e o apoio aos próprios pais em fim de vida, por outro, geram uma grande pressão.
Sem dúvida! A geração dos actuais avós é chamada «a geração sanduíche», por ter de se desdobrar entre uns e outros. Uma situação grave que se passa em Portugal é uma família que cuide de um idoso em casa não poder incluir no IRS as despesas inerentes a essa responsabilidade, mas se o puser num lar já pode! Ora está a promover-se a institucionalização e a segregação dos mais velhos quando devia ser o contrário.

Defende o apoio domiciliário em vez dos lares?
De um modo geral sim, mas temos de analisar cada caso e a vontade da pessoa conta muito. Há uma tendência para os filhos infantilizarem os pais quando estes chegam à velhice, mas se as pessoas estão na posse das suas faculdades mentais não devemos decidir por elas só porque são velhas! Alguém que viva sozinha e está numa cadeira de rodas mas que tenha o apoio dos vizinhos e dos amigos que moram perto se calhar não precisa de ir para um lar. Já outra pessoa que tenha mobilidade mas que viva muito isolada pode beneficiar do contacto social se estiver integrada numa estrutura...

Ir morar com os filhos é ainda uma solução muito frequente em Portugal? Mais do que noutros países da Europa?
Sim, temos uma grande proporção de mulheres com mais de 75 anos a viver com familiares: 37 por cento, quando na Holanda a percentagem se situa nos sete por cento. Isto não significa que no nosso país exista um grande capital de solidariedade e entreajuda. O que se passa é que estas mulheres não conseguem sobreviver sozinhas com as baixas pensões que recebem e sujeitam-se a dormir num sofá-cama na casa dos filhos. A solidariedade deve funcionar, mas não assim!

A ideia de velhice continua a ser assustadora?
Perdura o pavor de envelhecer. É a sensação de perda que mais nos assusta. Queremos envelhecer com saúde, com boa qualidade de vida, afastando o terror das demências e das doenças incapacitantes.

Ser avô é um título que cai bem, ser idoso nem por isso...
Ainda há o estigma de ser velho. Mas não podemos continuar a olhar para o idoso como alguém incapaz e sem autonomia. É preciso delapidar esse estereótipo. Os nossos idosos são mães, pais, avós, pessoas integradas na sociedade, que trabalharam e têm os seus interesses e ocupações. Eu pergunto muitas vezes se o Manoel de Oliveira é um idoso. Como o podemos definir?

Há quem diga que os netos são «a sobremesa da vida».
Para muitos avós, os netos vêm dar um novo sentido à vida. A transmissão da memória viva fica assegurada. É uma questão de continuidade.

BI
Ana Alexandre Fernandes nasceu há 58 anos na Zambézia, em Moçambique. Tem dois filhos rapazes e aguarda «com expectativa mas sem pressa» o momento certo para ser avó. É socióloga e demógrafa, professora no Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Coordena o mestrado em Saúde e Envelhecimento e está ligada a vários projectos de investigação sobre o envelhecimento da população, financiados pelo Ministério da Saúde e pela Comissão Europeia. Escreveu o livro Velhice e Sociedade (Celta Editora) e mais recentemente publicou Questões Demográficas (Edições Colibri).

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