Então vamos lá aviar a Joana Vasconcelos

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Uma revista diz: "Joana Vasconcelos incendiou as redes sociais." E um jornal: "Joana Vasconcelos arrasada no Facebook." É próprio da internet ter os efeitos da cavalaria de Átila. Os hunos passavam uma vez, não voltava a crescer erva e eles cavalgavam em frente até à próxima pastagem - já a modernice dá-nos escândalos que vêm, voltam e repassam todos dias. A internet tem erva a crescer em moto-contínuo. Vamos, então, ao mais recente fenómeno devastador, tirando o caso das chapadas.

Em apoio aos refugiados, a RTP pediu um depoimento em vídeo a algumas pessoas. Se lhe calhasse a si o drama de ter de fugir do seu país, o que levaria numa mochila? O melhor testemunho foi da artista plástica Joana Vasconcelos. Definição de "melhor" na internet: coisa com mais "likes", palavra, como o seu nome não indica, que quer dizer que se gosta e não se gosta. Joana foi um sucesso nas redes sociais. Era capaz de dar uma bela ideia para escultura moderna: uma pessoa tecida em rede a ser devorada por uma centrifugadora, que transforma o corpo-rede em confetti feéricos atirados ao ar...

[destaque:Imagine-se você que é um galináceo capado, como é costume nas redes sociais, com o cacarejo tão seu, flácido e lânguido, que poria hoje no seu Facebook ou Twitter?]

Há bocado escrevi que o testemunho da artista teve muitos likes, mas é de sublinhar que estes foram mesmo dos melhores, isto é, dos piores. As redes sociais indignaram-se até à apoplexia. Ainda esperei que elas, as redes sociais, também se transformassem em confetti feéricos, mas elas é mais frases de desprezo: "RTP, eu teria vergonha de partilhar isto!", decretou um indignado.

Fiquei curioso em ver o depoimento da Joana Vasconcelos. O rol do que ela, em fuga, meteria na mochila. Ela disse, em 30 segundos: o caderno para fazer os desenhos, os lápis, o iPad das fotografias, os óculos de sol, "todas as minhas joias", as lãs e uma agulha, e o iPhone. Daí, indignações como esta: "Uma pessoa foge da guerra e leva o iPad e o iPhone, lã para ocupar os tempos livres... Realmente, esta gente não tem noção nenhuma..." Ou esta: "E vergonha, não levava?"

Mas tenho de confessar: gostei do rol. E sabem porque gostei? A mochila levar coisas, substantivos, utilidades. A Joana Vasconcelos percebeu que lhe pediam para imaginar uma situação de fuga dramática. Ora, aí, o canivete suíço pessoal que ela descreveu é o adequado. É verdade que seriam preferíveis outras respostas se a hipótese da RTP fosse esta: imagine-se você que é um galináceo capado, como é costume nas redes sociais, com a testosterona que deixou de lhe fazer falta algures a passar para o gorgomilo, a lançar o cacarejo tão seu, adamado, flácido e lânguido, que poria no seu Facebook ou Twitter? Aí, de facto, o rol podia resumir-se a uma vigorosa frase de indignação.

Mas à Joana pediram-lhe para se "meter" numa dessas fugas dramáticas que os jornais de hoje nos contam, e que também a memória de muitos portugueses poderia testemunhar. Tive um amigo que saiu de Moçambique com uma mão à frente e outra atrás, frase batida que ele resumia melhor: "Levei os dedos." Nos primeiros meses fora da sua terra tocou nos hotéis para comer. A Joana meteria na mochila o caderno, os lápis, as lãs - nada de fútil, tudo útil, a artista viveria disso.

Os óculos de sol? Eis um piscar de olho solidário aos refugiados modernos - ela entendeu o que pode ser um artigo de primeira necessidade ao atravessar o Mediterrâneo de barcaça. O iPad - estaria aí a prova do vazio da Joana? Há já quase 20 anos, vi uma rapariga kosovar chegar à fronteira albanesa. Agarrava-se a um molhe de cinco fotos polaroides, já de cores manhosas. Eram cinco olhares derradeiros à casa que abandonara. Meses depois, eu e o fotógrafo Luís Vasconcelos vimos do outro lado da fronteira, no Kosovo, casas de sérvios saqueadas, com as fotos dos proprietários queimadas e espalhadas entre cinzas e destruição. O iPad da Joana, uma leviandade? Ou, tão-só, ela ter um pai que tem uma vida e lhe a contou?

É verdade, a Joana Vasconcelos podia, talvez, ter-nos poupado à quase indecência de meter as joias na mochila. Deveria ir ao banco lá do seu bairro e fazer a transferência da sua conta para um banco da capital que escolhesse ir viver. Ou, talvez, não tivesse tempo. Os dramas a que se foge têm a mania de surgir de forma abrupta. Há cem anos, Yelena Ivanovna, riquíssima, como só os russos eram nesse tempo, fugiu dos bolcheviques com uma joia escondida, um ovo Fabergé. Viveu dele, de 1918 até morrer pouco antes da II Guerra Mundial. É possível conhecer esse pormenor lendo uma linha da autobiografia de Vladimir Nabokov, filho de Yelena. O problema é que essa linha está num livro inteiro, Na Outra Margem da Memória. E com tanta indignação para se mostrar nas redes sociais - e lições a dar! -, a gente às vezes não tem tempo para tudo.

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