Elia Suleiman: ele é Palestina, ele é memória

Depois de <i>Intervenção Divina,</i> Elia Suleiman filma em regime de tragédia burlesca a sua Palestina com contornos de história. Neste caso, o relato da sua família quando se deu a formação do Estado de Israel, em 1948. <i>O Tempo que Resta </i>não poderia ser mais pessoal. Estreia nos cinemas para a semana, depois de já ter estado no DocLisboa (passou na secção de não-documentários…) e no Fantasporto. Altura para conhecer melhor este actor e realizador. Um grande provocador.
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Este homem é um artista das crónicas de amor e dor. Em O Tempo que Resta encena a sua própria tragédia, a dele e a de todos os palestinianos. Uma encenação com humor e um toque biográfico esmagador. Aquela é a sua história, são os seus pais. É ele. Começa em 1948, a data da fundação do Estado de Israel, e vai até hoje. Trata-se de um olhar palestiniano que nos mostra os palestinianos que permaneceram num solo que deixou de ser deles, aqueles que são chamados israelo-árabes. E desde que Portugal conheceu o seu cinema em 2002 com Intervenção Divina que Suleiman se tornou uma espécie de voz oficial do cinema da Palestina, uma espécie de profeta do mal-estar de um povo. Agora é mais directo. O Tempo que Resta é um jogo de memórias, um levantamento de absurdos. Se o cinema é a efabulação das memórias, a infância do realizador está aqui escarrapachada, com humor, claro, mas com uma nova mágoa, pois claro… Acima de tudo, o que ele não quer é dar uma lição de história. A sua proposta é outra

Cinema, lugar de prazer
Quando olha para trás e se vê como o miúdo que vemos no filme, diz que não encontra pistas para o cineasta que veio a ser: «Era basicamente um estudante baldão. A única coisa que percebia é que tinha jeito para contar histórias, mas nunca pensei que pudesse ser através do cinema. O que é curioso é que não acreditava muito nas minhas piadas. Antes do cinema, tentei escrever e, aqui e ali, cheguei a ser publicado. Depois lá cheguei ao cinema, senti que resultava naquele meio. Mas aprendi cinema na prática, fazendo… filmes! Quem financiou o meu primeiro filme teve algo de visionário. Descobri que o cinema é um lugar de prazer.»
O desejo maior do cinema deste cineasta passa por contar a sua história sem expansão horizontal, ou seja, ambiciona uma certa verticalidade. Digamos que é a sua ética, mas no jogo da revisão da sua história omite deliberadamente factos. Na vida real tem quatro irmãos, enquanto no filme o pequeno Elia é um menino solitário: «Quando se escreve o argumento passamos por várias fases. Numa delas, escrevi o papel de um irmão, mas o filme depois estava a ficar enorme – tive de o apagar. De alguma forma, temos de estar sempre a cortar um guião. Seja como for, este não é um documento preciso sobre a minha família. Não quis reproduzir o passado mas sim reinventá-lo. Uma coisa é certa, ao ver este filme lembro-me de coisas. Às vezes, até penso que algumas das personagens fictícias existiram mesmo. Quando inventamos, a ficção torna-se realidade». Tão real que entre o biográfico e semibiográfico vai então um passo para a mentira. Há quem também tenha argumentado que este universo que escalpeliza a dor palestiniana tem influências de banda desenhada. Suleiman não rejeita essa ideia: «Tentei às vezes um efeito cartoonesco. Porquê? Porque faz-me rir, sobretudo quando tem dimensões tão grandes, como, por exemplo, um tanque a explodir.» Explica melhor porque tem dito que tem prazer neste processo de auto-exposição: «É uma coisa espiritual. A minha personagem aqui é transparente e emocional e só isso permite um processo muito interessante. O que tive de fazer foi eliminar toda a psicologia do meu sistema e tentar alguma meditação antes de me transformar em actor, até porque o meu estilo não é o melodramático. Digamos que sou um actor muito estático.» Haverá um reverso da medalha? «Às vezes é doloroso quando escrevo sobre mim. Por muito que possa parecer paradoxal, é sempre complicado quando estou a filmar alguém que representa a minha mãe. É como se estivesse a dar-lhe vida. O que fiz neste filme foi um retrato, um retrato com dor e alegria. Nunca se deve exprimir emoções apenas com duas cores, nada é apenas preto ou branco. Quando verbalizamos as emoções podemos cair de forma intencional numa fórmula didáctica. Temos de permitir todos os caminhos da via emocional, nem que sejam assustadores ou imprevisíveis. E é daí que surgem revelações… revelações como, por exemplo, percebermos que afinal não estamos apaixonados», responde. Entre as revelações das memórias do cineasta, ou mais propriamente as memórias do pai, está a formação da resistência palestiniana, em que um grupo de homens decidiu resistir, sem meios, às forças militares israelitas com treino militar e armamento ilimitado. Às vezes, tudo aquilo é trágico, noutras, de tão absurdo, cheira a humor provocador. «Mas não há tomada de posição no meu filme», avisa Suleiman, meio sobressaltado.

A «culpa» dos media
Depois de sete anos sem filmar uma longa-metragem, perguntámos se tinha abdicado do cinema para encontrar histórias. «O que aconteceu é que tive muitos momentos de vazio. Havia muito ar… Foi muito, muito difícil», conta. Sabemos que nunca desistiu de ensinar e que se entreteve com a «curta» para o filme encomendada pelo Festival de Cannes para a obra colectiva A Cada Um o Seu Cinema. Como actor, participou, em modo de comédia, em Bamako, o filme-ensaio de Abderrahmane Sissako.
Desde que o filme estreou em Cannes cimentou o seu lugar como voz activa da Palestina livre. E admite que as cenas em que vemos soldados israelitas em 1948 a ocupar as casas árabes dos palestinianos possa perturbar as consciências dos israelitas: «Essas pilhagens que vemos no filme nem nascem de um choque cultural. Eles pilhavam e roubavam. Não é uma coisa cultural. É a cultura de uma força de ocupação. Claro que quando alguém ocupa acaba por roubar, acaba por escravizar. Sempre foi assim em toda a história. Não quero é que me envolvam na balança de forças entre Israel e a Palestina. As pessoas deviam fazer dieta de televisão!» Para o cineasta, as percepções deste conflito são envenenadas pelos media, sobretudo pela televisão. «A net também não é um escape. Penso que é uma reprodução da televisão, não é saudável. Há algo de pornográfico no conceito do myspace…», completa. Pressente-se que o seu cinema prosseguirá dentro de momentos. E ainda mais cáustico…

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