Na nota de apresentação de A Sibila, escreveste que prevaleceu "a vontade de transpor para a tela o espírito da obra, mais além do que o seu decalque". Que espírito é este? Tem a ver com a época da ação? É uma questão realista? Ou simbólica?.Talvez um pouco de tudo isso, mas será sobretudo no símbolo. Não é um espírito de época, porque no filme não há uma datação exata, mesmo se sabemos que muita coisa acontece no mundo durante o período da história de A Sibila - mais ou menos entre 1870 e 1950, há uma mudança de regime, uma guerra mundial, outra guerra mundial....O que, por vezes, levará o espectador a perguntar: isto, afinal, está a acontecer quando?.Em boa verdade, não interessa. O propósito do filme, e isso tem muito a ver com o romance, é que não se perceba muito bem quando é que está a acontecer... Para mim, e também em função das leituras que fiz, o romance tem qualquer coisa de circular, de cápsula. Depois, há um espírito do lugar - Vila Meã, Amarante, o norte entre Douro e Minho - em que o que mais importa é não haver horizonte. Nos Contos Amarantinos, Agustina tem uma bela frase que nos ajuda a perceber isso mesmo: "Era uma casa de lavoura que ficava num vale. Minha mãe dizia que o lugar não tinha horizonte, mas a mim parecia-me bem. Não gosto de lugares descobertos, onde tudo se avista e nada se inventa"..Esse fechamento do espaço tem também qualquer coisa de assombramento?.É como uma parede. No romance, há mesmo uma passagem em que se diz que o mundo de Quina acabava nas terras dos amigos que comunicavam com terras de outros amigos. Não é como uma borboleta que vai sair da crisálida para o mundo. Há um ensimesmamento: o que Agustina procura são os interstícios da alma - Quina e Germa são personagens assombradas..Todas essas características são especificamente portuguesas? Ou há no livro e no filme uma dimensão universal?.Gosto sempre de pensar que há uma dimensão universal, com singularidades que decorrem da cultura de que somos herdeiros. No caso português, há fatores marcantes, que tanto têm que ver com a presença do Atlântico, como com a história do cristianismo, ou ainda com os árabes no sul e os celtas no norte... mais do que a gesta heroica, cuja narrativa me interessa bastante menos. Ao mesmo tempo - e isto talvez seja algo contraditório -, entendo bem o espaço em que se passa A Sibila, porque é certo que as minhas raízes cruzam Coimbra e Cabo Verde, mas foi ali perto, em Guimarães, que eu cresci - tudo isso traz-me um certo sentimento de casa e também de alguma melancolia..No trabalho de adaptação do livro, sentes que houve palavras, frases ou parágrafos que foram especialmente decisivos para o teu trabalho?.Sim, sem dúvida. O Paulo Branco começou por me convidar para escrever uma adaptação do livro para cinema; depois, desafiou-me para realizar o filme. A resposta a esta pergunta tem a ver com a primeira parte desse trabalho. Eu tinha lido A Sibila quando era novo e, naturalmente, não tinha percebido grande coisa. Quando voltei a pegar no livro, em 2020, fui tocado por um assombro que fez com que A Sibila se tenha transformado, se não no "livro da minha vida", num dos três primeiros....Quais são os outros dois?.[Riso] Enfim, para não ser injusto com os outros nove, vou dizer que hoje (num dia de setembro de 2023) poderia referir as Ficções, de Jorge Luís Borges, e Do Natural - Um Poema Elementar, de W. G. Sebald. Mas regressando às frases de Agustina, quando releio A Sibila, o final comove-me..Que comoção é essa?.É qualquer coisa que mexe com o caminho que se traça e com o que se percorre. Depois do célebre: "Eis Germa, eis a sua vez agora e o tempo de traduzir a voz da sua sibila", logo a seguir Agustina escreve, e passo a citar: "Talvez ela fique de facto imóvel no seu constante, lento ou vertiginoso baloiçar, na casa que fortuitamente habita, e a sua história fique hermeticamente fechada no círculo de aspirações que não conseguiu detalhar e cumprir, porque aconteceu ser cedo ou ser tarde, porque não se compreende ou não se crê o bastante, porque se deseja demasiado e isto é todo o destino." O que aqui está é uma Agustina com pouco mais de 30 anos, que traça um caminho com a possibilidade de falhar, de cair a dada altura. Como leitor, eu chego já depois desse mesmo caminho estar concluído e percebo que ela não falhou, não caiu - e isso é muito comovente e com uma força propositiva quase torrencial. Há uma riqueza do texto que eu não quis, de modo nenhum, perder no filme..Daí a opção por uma voz-off que tem qualquer coisa de obsessivo....Sim, esta é uma possibilidade de contar A Sibila em filme. Há outras? Há, com certeza. Poderia eu próprio ter escolhido outros caminhos? Sim, podia, mas perder texto, perder a riqueza das palavras era algo que eu não queria que acontecesse... a não ser que estivéssemos a fazer um filme com 14 horas de duração, o que talvez fosse um pouco longo demais....Citando uma expressão corrente na gíria do cinema, sentiste que o trabalho de montagem do filme funcionou um pouco como a crítica do trabalho de rodagem?.Sem dúvida, tal como também se diz que a rodagem faz a crítica do argumento. A escrita é quase como fazer pão: é preciso amassar, virar, voltar a fazer... Paul Auster dizia que o final da escrita dos seus livros é sempre penoso porque, para recomeçar, "tinha de ler tudo do princípio". Em tudo isto, há momentos particularmente misteriosos, e é por isso que gostamos tanto de cinema. São momentos que senti como uma espécie de sopro, quando a cena se filma: é um estado de vigilância que está próximo da hipnose. Depois, na montagem, ao trabalhar com o Tomás Baltazar e o Tiago Augusto, senti sem dúvida essa crítica da rodagem -, mas é aí que se consuma o mistério e o cinema acontece. Adorei todo esse processo de montagem e toda a pós-produção, de acordo com uma lógica de equilíbrio entre trabalho intelectual e trabalho sensorial..Até que ponto, ou de que modo, esses trabalhos começaram a acontecer com os atores e as atrizes? Isto porque, lhes é pedido, literalmente, que encarnem qualquer coisa que começa na escrita..Esse é um trabalho que cabe numa amplitude maior, envolvendo fotografia, enquadramento... Quando os atores chegam para filmar, já os sentia "encaixados" em todo esse processo que, lá está, começou na escrita. Depois, em função da personalidade de cada um ou das propostas que trazem, eu debato, adiro e faço. Tive uma grande confiança nos atores e atrizes - daí que, para mim, tenha sido também um encontro com várias maneiras de representar e, nessa dialética, em particular, decidir a que distância colocar a câmara..No cinema português, a obra de Agustina foi sobretudo trabalhada por Manoel de Oliveira. Terá sido um fator de inspiração? Ou de demarcação? Ou nem uma coisa nem outra?.Para mim, foi como caminhar nos ombros de gigantes mas, ao mesmo tempo, não pensei muito nisso - por uma questão de respeito por toda a gente, eu incluído..Pensando nos temas em jogo - uma certa solidão das personagens, o assombramento dos lugares, etc. - sentes também que há outros cineastas, não-portugueses, que sejam significativos nesse tipo de abordagem?.Sim, há vários. Lembro a Kelly Reichardt, sobretudo em Old Joy ou First Cow - há uma melancolia muito subtil nas suas personagens. Depois lembro-me de Michelangelo Antonioni, sempre: com ele é uma aprendizagem constante. E há filmes referenciais como O Espírito da Colmeia, de Victor Erice. Sem esquecer Chris Marker e um filme feito quase só com imagens fixas como La Jetée - a melancolia também lá está..dnot@dn.pt