SE A PRIMEIRA tradução de Edgar Allan Poe surgiu em Portugal em 1857, feita a partir da tradução francesa de Charles Baudelaire, foram precisos mais 152 anos para que este autor tivesse em poucos meses a sua obra publicada integralmente no nosso país. O projecto surge num primeiro momento com dois grandes volumes que somam quase 900 páginas e às quais se podem ainda juntar dois outros livros que três editoras já publicaram em 2009. Trata-se de Todos os Contos Vol. 1, do Círculo de Leitores/Quetzal; da Obra Poética Completa, da Tinta da China; e de O Corvo e O Mistério de Marie Rogêt, da Relógio D’Água..Com estes volumes, a que se seguirão ainda outros, os leitores portugueses poderão finalmente ler (ou reler) a obra daquele que é considerado um dos maiores criadores norte-americanos, com o benefício psicológico de o fazerem no ano em que se comemora o bicentenário do seu nascimento..A que se deve esta inexistência de obras completas que só em 2009 se ultrapassa? Designadamente a nível da poesia, onde este volume é pioneiro, já que a sua prosa tem feito dele um dos autores mais traduzidos a nível nacional, apesar de ainda faltar esta compilação que agora é posta no mercado. Principalmente, é preciso não esquecer a grande influência que a obra de Poe exerceu sobre tantos escritores portugueses, como é o caso de Antero de Quental, Camilo Pessanha, Eça de Queirós ou Sá-Carneiro, por exemplo..A colectânea da Tinta da China é exemplar no tratamento que faz da poesia ao colocar uma óptima introdução e setenta páginas de notas a finalizar. Quanto à prosa, ainda vamos no primeiro volume e, decerto, haverá essa preocupação por parte da editora, tal como acontece com uma breve nota introdutória nos outros dois volumes mencionados..O fantasma de Fernando Pessoa.A introdução da Obra Poética Completa traz uma justificação para a ausência de traduções. Diz Margarida Vale de Gato que «é possível que os exercícios virtuosos» de Fernando Pessoa tenham inibido futuros tradutores desta parte da obra de E. A. Poe e que só teve em 1957 uma tentativa por parte de Roussado Pinto e parece que demasiado inspirada do brasileiro Milton Amado, que se antecipara em 1943..Depois de Pessoa houve outros portugueses que o fizeram, diz, mas que se cingiram a um ou outro poema e nunca à obra por inteiro e entre os poemas mais traduzidos está Annabel Lee, seguindo-se-lhe O Corvo, Ulalume e Os Sinos. Quanto a esta tradução, o fantasma de Fernando Pessoa continua a projectar-se pois a sua «estratégia matricial» remete à conformidade rítmica que o poeta já impusera..A estudiosa refere também que a influência de Poe provocou influências nos contos de José Rodrigues Miguéis, a invenção de fonovocábulos por Jorge de Sena, um jogo pós-modernista em Fiama Hasse Pais Brandão e um lirismo crítico em Ruy Belo. Ou sobre o movimento simbolista e surrealista, por exemplo. .Uma história do autor.Existem muitas biografias sobre Edgar Allan Poe, umas que ilustram o autor de forma exaustiva enquanto outras o fazem de ânimo mais leve. Nada de admirar, pois até os herdeiros exploram esse seu legado da forma mais comercial possível, proporcionando aos fãs de Poe comprar desde T-shirts até canecas de cerveja com a sua efígie. Há, no entanto, uma biografia interessante para consulta rápida (21 páginas) na internet (http://www.pambytes.com) que conta a sua história. Poe nasce em Boston a 19 de Janeiro de 1809 e é filho de dois actores miseráveis..A sua família emigrara para os EUA há poucas gerações mas em 1815 a família volta ao Velho Continente e o escritor chega a frequentar a escola na Escócia. Cinco anos depois regressa aos EUA, ingressa na universidade, vai para a tropa e em 1827 publica o seu primeiro livro de poesia: Tamerlane and Other Poems. Posteriormente, Poe escreverá ficção para sobreviver, desenvolve o estilo gótico, sátiras de humor, horror e morre de modo a fazer lenda: foi encontrado em delirium tremens nas ruas de Baltimore e faleceu quatro dias depois.. Porquê Edgar Allan Poe?.São poucas as obras de Poe que tenho vontade de reler – o longo poema Eureka, as três novelas que iniciaram o género policial e alguns contos indiscutíveis..Não considero Poe um clássico e estou de acordo com Harold Bloom, que o excluiu do cânone ocidental, ou com Borges, que aceita a sua glória, «apesar das redundâncias e fraquezas de que sofre cada página»..E, no entanto, poucos escritores tiveram maior capacidade de «contaminação» que Poe. Sob esse aspecto, é comparável a Walt Whitman, Borges ou Pessoa..As obras de Poe influenciaram Dostoiévski, André Gide, Ginsberg e Doyle, realizadores como D. W. Griffith e numerosos poetas franceses, incluindo o sofisticado Valéry. Para escritores tão diversos como Baudelaire ou Theodore Dreiser, era uma referência..É conhecida a tradução que o autor de As Flores do Mal fez dos seus contos e a versão em prosa feita por Mallarmé de O Corvo influenciou o moderno verso livre europeu quase tanto como as Folhas de Erva de Whitman..A invenção da história de detectives em O Mistério de Marie Rogêt, Os Crimes da Rua Morgue e A Carta Roubada iniciou o género de que o muito original Fernando Pessoa teve dificuldade em desviar-se – depois de o ter mimetizado em A Very Original Dinner..Walter Benjamin sublinhou a importância do conto O Homem da Multidão na criação da literatura em que o indivíduo se perde nas massas urbanas..Foi sobretudo esse aspecto de «contaminação» que levou à decisão de a Relógio d’Água editar O Corvo, que muitos poetas, a começar por Pessoa, traduziram, e O Mistério de Marie Rogêt e O Barril de Amontillado..O nosso projecto será completado com a publicação de vários contos, entre os quais O Caso do Sr. Valdemar, Manuscrito Achado Numa Garrafa,Uma Descida ao Maelstrom e Ligeia..Francisco Vale,Editor da Relógio d’Água