Economia do bem-estar

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Os 70 anos do nascimento de Bob Marley, que se celebraram a 6 de fevereiro, foram oficialmente assinalados pelo governo português através de Paula Teixeira da Cruz, que, numa entrevista à TSF, defendeu a liberalização das drogas leves. As declarações são confusas e contraditórias, arrojadas e ao mesmo tempo cautelosas, por vezes parecendo misturar drogas leves com drogas duras, legalização com liberalização, e o jornalista, tentando ajudar, só desajudou. Mas justiça seja feita à ministra da Jahstiça por ter trazido para cima da mesa um dos maiores elefantes presentes na sala pública.

Não sei o que são "drogas leves". Falemos antes, e apenas, de canábis, que é como se diz chamon aos trinta e muitos, quase quarenta. Vale a pena começar pelo óbvio: estão mais do que provados os efeitos medicinais dos canabinoides no tratamento de uma longa lista de patologias, desde o glaucoma à epilepsia, no alívio da dor, rigidez muscular e espasmos, ou na melhoria dos efeitos secundários da quimioterapia. Em todos estes casos, o dever moral e político é de financiar a investigação e, uma vez concluída, rapidamente permitir o acesso a quem necessite - não se trata de descriminalizar a droga, antes de criminalizar estados e governantes que não a disponibilizem.

A discussão não é, portanto, sobre liberalizar o uso medicinal, mas sim o uso recreativo. Não é a náusea da químio, é a moca do Quim. Há muito que os canabinoides são mais ou menos livres em Portugal. "Mais ou menos livres" é um estado de coisas que não é original de Portugal. "É legal, mas não é cem por cento legal", já explicava o Vincent ao Jules, no Pulp Fiction, sobre o haxixe em Amesterdão. Mais ou menos livres é, pragmaticamente, o que resulta da conjugação da descriminalização das drogas em 2001 com a alteração quer das mentalidades para com o consumo quer dos padrões de consumo. Ou seja, quem hoje quiser enrolar um charro e fumá-lo em Portugal pode fazê-lo mais ou menos sem problemas.

O que a ministra agora parece querer é dar um passo além do mais ou menos. E há duas razões para que isso seja feito, e depressa: uma de coerência, outra de oportunidade.

A legislação portuguesa de 2001, que descriminalizou o consumo de drogas, é dos poucos exemplos de políticas públicas em que somos dados como bom exemplo mundial. Permitir e regular o cultivo e a comercialização de canábis é ser coerente com esta característica essencial do Estado português. Descriminalizar o consumo mas não liberalizar o cultivo e o comércio é o Estado a proteger o pequeno tráfico e a pequena criminalidade. Já para não falar na qualidade dos produtos e na saúde dos consumidores - no meu bairro, não sei se verdade se mito, diziam os pequenos traficantes que a melhor maneira de dar aos "sabonetes de chamon marado" o seu cheiro característico era barrá-los com uma graxa usada para lubrificar os carris dos comboios, o que não deve fazer bem a ninguém.

Claro que há sempre o argumento do "mas gostavas de ver os teus filhos charrados?". Não. Como não os quero ver a cair de bêbados com garrafas de vodka compradas no supermercado, ou shots emborcados nos bares de Santos, que mais parecem um concerto da Violetta sem as mães, tal a idade das crianças. Mas não acho que se deva proibir a venda de álcool, ou que os bares devam fechar, apenas fazer cumprir as leis em vigor. Como não gostava de os ver morbidamente obesos, mas não advogo a proibição da venda de lasanhas congeladas e caixas de gelados no Continente. Mas o argumento da coerência leva mais longe: a esquizofrenia entre o histerismo com o canábis e a complacência com o álcool transmite uma ideia de hipocrisia de Estado e de que a cultura de um povo justifica coisas más. Mesmo quando se sabe que conduzir bêbado é mais perigoso do que conduzir charrado, somos mais permissivos com o álcool. Coerência é educar para a responsabilidade de viver numa sociedade livre que permite males equivalentes - em que não devemos fazer tudo o que podemos. No fundo, é procurar reduzir a necessidade e o desejo de alienação, evitá-lo se evitável e conduzi-lo para as alternativas menos lesivas possíveis - mais uma vez, a perigosidade do álcool é reconhecidamente superior à do canábis.

Há, depois, uma questão de oportunidade. Que não haja dúvidas: muito em breve, dentro de dois ou três anos no máximo, os canabinoides vão ter um tratamento igual ao gin à escala mundial. Aliás, a liberalização total está neste momento a acontecer. É ver o que se está a passar nos Estados Unidos e que, com Hillary Clinton na presidência, será ainda mais rápido e irreversível. A Europa, por seu lado, não ficará atrás, por um misto de não querer e não poder.

E aqui entra a oportunidade de Portugal dar o primeiro passo e de pensar a regulação inteligente e segura do cultivo e venda deste produto. É bem-estar, é verde, é o regresso à agricultura, é um mercado europeu de dez mil milhões de euros. E se alguém duvida da relevância económica deste mercado, do que poderia significar para a economia nacional e para o erário, basta lembrar que um dos maiores investidores na economia do canábis é Peter Thiel, um dos primeiros investidores no Facebook, e atual investidor no Spotify, no AirBnB e noutras indústrias do futuro, e pouco conhecido por se enganar nos investimentos. George Soros, um visionário que é multimilionário graças ao pragmatismo com que usa o seu dinheiro, é um dos grandes financiadores da causa verde. Ainda ontem no Financial Times se lia que as indústrias mais rentáveis na bolsa, nos últimos 100 anos, foram as do tabaco e as do álcool. Nada melhor do que apostar em algo que está quase, quase a deixar de ser proibido.

Há certamente uma infinidade de questões regulatórias a pensar: quem produz, quem controla, quem pode consumir e onde se pode vender. Já agora, a ministra falou em farmácias, mas não parece fazer qualquer sentido juntar pacotinhos de ervas para rir com creme hemorroidal ou calicida indiano.

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