É preciso ter lata

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1 Esta expressão popular portuguesa, aqui invocada no seu sentido literal para celebrar metais porventura menos nobres, ocorre-me por estes dias sempre que o tema do museu que ainda não existe em Lisboa vem à baila, em artigos de opinião ou em entrevistas a personalidades públicas. O termo ocorreu-me pela primeira vez quando li a nota editorial de Ferreira Fernandes, nas páginas do DN, intitulada "O Museu dos Filetes de Cavala". Teve essa nota o dom de conferir leveza a um debate caracterizado por considerável intensidade, truculência e, por vezes, imaginação à rédea solta, toda ela candidata a um dia encontrar o seu espaço adequado. Num museu, por exemplo. Comentando o debate no estado em que ele então se encontrava, após a publicação no Expresso de uma carta aberta de profissionais de disciplinas das humanidades e das ciências sociais, o diretor do DN refere uma vistosa loja de conservas que abriu há cerca de um ano, no Rossio, salientando a "afoiteza" da sua estratégia comercial, assente na visualização espaventosa do kitsch da viagem, segundo a qual Bartolomeu Dias transfigura cada lata de sardinha numa irrepetível passagem do Atlântico ao Índico. E remata, dizendo, "mas aquelas latas de conserva já fazem mais do que o museu encalhado que não singra por causa da tabuleta". Aqui, a apreciável leveza do texto namora com a ligeireza: é que, se oferecia uma análise das razões pelas quais a terminologia do anunciado museu merece cuidado, a carta pressupunha que na questão da terminologia há muito mais em jogo. Falando em meu nome, e enquanto signatário, há outras razões pelas quais o museu felizmente permanece encalhado. Parece-me que, se um dia ele desencalhar, a sua aptidão para a navegação dependerá da qualidade do debate que a democracia portuguesa conseguir insuflar-lhe.

2 Numa entrevista recentemente concedida ao Público, o primeiro-ministro fez uma declaração que confirma que é de figuras deste governo, desde 1974-75, que escutamos as asserções mais desenvoltas sobre a memória do colonialismo. Já noutra ocasião comentei a afirmação do ministro da Cultura de que a colonização portuguesa havia sido tão boa ou tão má como as outras. Agora, foi a vez de António Costa afirmar que "é preciso descolonizar os Descobrimentos". Mas para sabermos se a proclamação - com cuja letra estou de acordo - foi cunhada em metal de lei, seria preciso dissolver a ambivalência que caracterizou as palavras do primeiro-ministro; ora essa tarefa não se afigura fácil, pois, se António Costa afirmou que "Não temos de ter uma relação complexada com os Descobrimentos" - outra formulação com a qual concordo - não chegou a explicitar o que constituía o complexo que não devemos ter, nem tampouco esclareceu o que significa "descolonizar". Nada como a clareza para desfazer complexos em redor do substantivo "Descobrimentos", e que a controvérsia sobre o museu tem vindo a explicitar (a preservação de visões excecionalistas sobre a história colonial, o nó que vários interesses em Portugal querem fazer górdio entre o comemorativismo e a autoestima nacional, a intolerância em relação a olhares críticos sobre o passado colonial). Esses complexos são recorrentes e estão longe de ter merecido um debate franco na sociedade portuguesa, até agora. Todavia, há formulações no discurso de António Costa que mantêm a compreensão destas questões num estado de ambivalência, o que é surpreendente num estadista que revela um conhecimento das tendências da investigação contemporânea nessas matérias. Um momento problemático da entrevista é a comparação entre a Expo 98 em Lisboa e a Expo 92 em Sevilha: o primeiro-ministro propõe a ideia de que o evento lisboeta representou um avanço em relação à sua antecessora espanhola por ter tido "a inteligência de apresentar essa narrativa da navegação como uma narrativa de encontro". Os eufemismos desta estirpe constituem, como o primeiro-ministro certamente sabe, alvos privilegiados das análises pós-coloniais, pois as renovações terminológicas não substituem o trabalho de reflexão, debate e transformação social que urge fazer. Por outro lado, gostaria de ter visto Costa a enfatizar aquilo que verdadeiramente autorizou os portugueses a discutirem sem complexos a sua história: não foi, nem poderia ter sido a Expo 98 - nem nenhum dos eventos com que Portugal periodicamente celebra a grande dificuldade em renovar a narrativa sobre um período crucial da sua história; foi a 25 de Abril de 1974, e não em 1998, que os portugueses a si mesmos se autorizaram a falar desassombradamente sobre a sua história, porque foi nessa data que renovaram o compromisso com os valores humanistas do Século das Luzes, estabelecendo também novos compromissos com os povos africanos que então assinalaram o fim da luta pela autodeterminação. O século XVIII foi um século de muitas trevas, em Portugal como no resto do mundo, mas permitiu a enunciação de ideias que, a partir dos anos 70 do século passado, a experiência histórica portuguesa permitiu realizar de muitos modos, e até enriquecer-lhes o significado. É esse tempo que ainda habitamos, porque as suas promessas não só não foram cumpridas, como aquelas que o foram estão a ser ameaçadas em várias frentes. Mais um museu em Lisboa dificilmente substitui uma das tais promessas por cumprir: uma política cultural consistente. Mas eu mantenho um espírito aberto, porque é possível que, até à reforma de António Costa, o debate sobre o museu amadureça em Portugal, e ele já mostrou ser capaz de dizer coisas novas. Haja lata para tanto, é de metais menos nobres que se faz a alquimia.

Professor de Estudos Lusófonos na Universidade de Ohio

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