E depois de Bovary, Flaubert criou a "maníaca"

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Considerado um dos nomes maiores do realismo, Gustave Flaubert foi um escritor de poucos livros. Quando morreu, aos 59 anos, deixou Madame Bovary, Salammbô, A Educação Sentimental, Três Contos, A Tentação de Santo António, O Candidato (teatro) e Bouvard e Pécuchet, obra que não chegaria a terminar. Em contraponto, deixou inúmeras cartas que seriam reunidas num volume: Correspondência.

A explicação para a escassez de títulos está no tempo que o autor dedicou à escrita de cada um. Salammbô - romance histórico que se sucedeu em edição ao êxito junto dos leitores que foi Madame Bovary -, resulta de cinco anos de investigação e escrita e é considerado um livro de ruptura, inovador não apenas no percurso de Flaubert, mas na literatura da época.

O escritor, natural de Rouen (Maio de 1821) teve a ideia de fazer uma reconstituição literária da civilização cartaginesa no período das guerras púnicas (série de três guerras que opuseram Roma à República de Cartago, de 264 a.C. a 202 a. C.), após uma visita às ruínas de Cartago, em 1862. Saiu um retrato desassombrado das paixões humanas e do que podem desencadear.

Eis a génese de Salammbô, agora editado pela Relógio d'Água numa tradução (notável) de Pedro Tamen. "Era em Megara, subúrbio de Cartago, nos jardins de Amilcar." A primeira frase situa a acção, no caso o festim dos Mercenários, celebração de vitória e primeiro capítulo do romance com que Flaubert desafiou a popularidade obtida com Madame Bovary e reagiu a um processo que a classificou como "obra execrável do ponto de vista moral". "Os soldados que este [Amilcar] comandara na Sicília organizavam um grande festim para celebrar o aniversário da batalha de Éryx e, como o dono da casa estava ausente e eram muitos, comiam e bebiam em completa liberdade."

Salammbô é filha do general Aníbal Barca, conquistador cartaginês e, a partir do festim, alvo da paixão de Mâtho, mercenário que desconhece que Salammbô fora consagrada ao culto da deusa Tanit e afastada de qualquer actividade mundana. Flaubert haveria de classificá-la como "uma maníaca da espécie de Santa Teresa". A acção segue com um conjunto de tumultos e Mâtho a roubar o manto da deusa, objecto que nenhum mortal estava autorizado a tocar...

Publicado em 1862, Salammbô esteve no centro de acesa polémica, com críticos como Sainte-Beuve a acusarem Flaubert de erros históricos. A censura minuciosa do influente crítico francês mereceu uma carta de resposta do escritor, reproduzida nesta edição. Flaubert responde e afirma: "[...] posso muito bem ter fracassado. No entanto, segundo todas as verosimilhanças e as muito minhas impressões, acho que criei qualquer coisa parecida com Cartago. Mas não é esse o problema. Que me importa a mim a arqueologia!"

Um ano depois, George Sand publicava um artigo a elogiar Salammbô. Seria o princípio de uma amizade eterna. |

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