Dia 1Woody Allen abre o festival e cria o primeiro momento de suspense: Carla Bruni, que é actriz no seu novo filme, Midnight in Paris, vem ou não. Se vier, traz Sarkozy? Milhares de pessoas juntam-se ao pé da escadaria vermelha para descobrir que não, não senhor. O presidente e a primeira-dama deram tampa ao festival, isto depois de Woody Allen se ter desfeito em elogios à sua nova musa, que mal se vê no filme. Midnight in Paris é um regresso à doçura e fantasia de Woody: tem viagens no tempo, muita promoção turística a Paris e uma parecença fértil com Rosa Púrpura do Cairo. O festival começou bem e na projecção de imprensa houve muitos aplausos, mesmo no meio da projecção, em especial quando surge Adrien Brody a fazer de Salvador Dalí.Antes, numa praia em frente ao Hotel Carlton (o mais emblemático da Côte d"Azur), uma acção de parasitagem da DreamWorks, que todos os anos monta por aqui um aparato promocional para promover as suas animações. Por exemplo, Seinfeld já se vestiu de abelha na mesma praia e Jack Black também mergulhou por ali. Vale tudo. Hoje a acrobacia está montada para Puss in Boots (o Gato das Botas de Shrek) e Salma Hayek e Banderas estão na marginal para acenar, serem fotografados e responderem rapidamente a algumas perguntas da imprensa. O que conta aqui é o ruído. Flashes e gritos dos transeuntes: «Salma! Antonio!»E num ano de excesso de acreditações (cada vez aparecem em Cannes mais jornalistas online), a sessão de imprensa de Midnight in Paris estava a rebentar pelas costuras. Na entrada para a gigante sala Debussy, a habitual confusão e atropelos entre os festivaleiros. É como se os cinéfilos, de repente, parecessem hooligans a entrar para um estádio de futebol. À noite, mais um filme: Sleeping Beauty, da australiana Julie Leigh, um conto de fadas com bruxas más sobre um bordel de luxo onde homens idosos pagam para dormir com miúdas drogadas. Um filme de choque que dividiu muitas opiniões. Mas é claro que os jornalistas não têm direito à cerimónia de abertura. O máximo que se pode fazer é assistir pelo circuito televisivo interno. Dia 2Quem anda por Cannes arrisca-se a, literalmente, esbarrar com estrelas. No hotel Martinez, um dos mais elegantes da Croisette, nesta manhã estão a entrar para o mesmo elevador Jonathan Ross, conhecida personalidade televisiva do Reino Unido, e Jane Fonda, que ao mesmo tempo está a dar uma entrevista para uma televisão francesa. Todos nós, naquele elevador, vamos ficar no boneco. E é nos hotéis que os jornalistas fazem e marcam as entrevistas. Este ano, os publicistas e as produtoras parecem querer explorar as distribuidoras. Alguém comenta que para O Castor, uma comédia de Jodie Foster com Mel Gibson, cada entrevista custa quatro mil euros ao distribuidor. Mel Gibson é realmente caro, mas parece que Brad Pitt, quase a chegar ao festival, ainda cobra mais. Estatutos...Num hotel ao lado, Woody Allen passeia-se por um corredor com uma imensa trupe de publicistas e agentes. Ao seu lado está um sorridente Owen Wilson, estrela de Midnight in Paris. Rachel McAdams vem mais atrás e em pleno elevador conta-me que adorava vir a Portugal. Só não sabe qual a melhor data...No cinema do Palais Lumière, outra sessão que para entrar é preciso suar, ser empurrado e empurrar: We Need to Talk about Kevin, de Lynne Ramsay, a tal cineasta que se diz poder salvar o cinema britânico. O filme é recebido com aplausos moderados, o que não deixa de ser justo para um objecto que baqueia quando tenta ser pesado no seu pessimismo humano. Mesmo assim, mais uma boa aposta de uma competição forte. Quem passeia pela Croisette desconfia quando é obrigado a parar perante uma multidão que espera no Carlton para espreitar Angelina Jolie. É mais uma acção de parasitagem da DreamWorks, neste caso para promover O Panda do Kung Fu 2. Ou seja, a DreamWorks nunca precisa de ser convidada para a selecção oficial: aparece à mesma.Dia 3O dia começa com Nanni Moretti e o seu Habemus Papam, uma crónica sobre um papa que é escolhido e, momentos antes de ir à varanda do Vaticano saudar os fiéis, tem um ataque de pânico e duvida se é capaz de assumir a responsabilidade. É uma comédia calorosa que foi aplaudida na sessão de imprensa. Trata-se sobretudo de uma imensa meditação sobre o teatro e a vida. Porque para Moretti a Igreja é teatro. Num hotel mesmo ao lado do Palais, Moretti posa para uma foto mas avisa que tem pouco tempo. O fotógrafo obedece. No lançamento do próximo festival de Toronto, na praia das praias (a última da Croisette), os canadianos oferecem um cocktail com direito ao famoso croquete. Os jornalistas, esfomeados, atacam a comida em três tempos. Rodrigo Santoro, sem perceber muito bem por que razão, também está lá. Os responsáveis do festival confessam, com um copo na mão, que é em Cannes que fazem a maior colheita.A noite termina com uma estopada israelita chamada Nota de Rodapé, de Joseph Cedar, sobre um pai que é mau pai. Na sessão não houve aplausos nem assobios. Às vezes, uma vaiazita é bem melhor do que este silêncio cortante.Dia 4Começar o dia no Palais Lumière para ver na secção Fora-de-Competição Piratas das Caraíbas Por Estranhas Marés, às 8h30 da manhã. Entusiasmo imenso, atropelos à entrada e centenas de fora. Tudo para uma enorme desilusão - o filme teve direito a vaias nessa sessão e Johnny Depp, de facto, já cansa como Jack Sparrow. É como se estivesse a fazer uma caricatura daquilo que fez brilhantemente no primeiro Piratas. Na conferência de imprensa, Depp lembrava que teve uma fase em que só fazia fracassos comerciais. Numa praia ameaçada por trovoadas, Emily Browing, australiana que está a conquistar Hollywood (aqui está a promover Sleeping Beauty, mas foi através de Sucker Punch - Mundo Surreal que ganhou estatuto de estrela), conta à NS' que não tem problemas nenhuns em despir-se em frente à câmara: «Os meus pais sempre me ensinaram que é a coisa mais natural do mundo.»À noite, mais um filme em modo de parasitagem a fazer ruído mediático na Croisette: 3D Sex & Zen Extreme Ecstasy, um dos campeões de bilheteira na China. As actrizes porno convidaram a imprensa para um distinto jantar oriental. Um jantar muito pudico com todas elas bem vestidas e sem direito a óculos 3D, pois nem excertos do filme houve. Nem filme nem Jude Law, membro do júri, que preferiu antes ir ao concerto dos Duran Duran. A banda de Simon le Bon voltou ao festival a convite de uma marca de vodca.No Palais, tempo para o melhor filme da competição deste arranque: Le Gamin au Vélo, dos irmãos Dardenne, uma comovente história de um órfão. O espectador sente-se sempre seguro na condução dos cineastas. Um primado de antipieguice.Dia 5No porto dos iates, todos eles com logótipos de companhias de filmes, há um que dá nas vistas, o da RCR, do angolano Rui Costa Reis, produtor que está em vias de ressuscitar a carreira de Spike Lee. Um iate que ostenta orgulhosamente duas bandeiras de Angola. Por ali, de certeza, rolam milhões em negociações. Para já, Rui Costa Reis fechou um acordo de produção com a Sony Pictures. Angola em Hollywood, pois então.No cocktail de recepção do Festival de Locarno, Portugal em força. Estavam lá, entre outros, o produtor Pedro Borges (Sangue do Meu Sangue não entrou em Cannes, talvez Locarno?), o realizador Rodrigo Areias (também em representação de Guimarães, Capital Europeia da Cultura 2012) e Nuno Rodrigues, do Festival de Vila do Conde. E se em Cannes o homenageado-mor é Belmondo, em Locarno, neste Agosto, as honras irão para o realizador Abel Ferrara, alguém que deve muito a... Cannes.Filme do dia: L"Apollonide - Souvenirs de la Maison Close, de Bertrand Bonello, um exercício livre passado num bordel parisiense do século xix. Com achados como anacronismos musicais a cargo dos Moody Blues e referências a João César Monteiro, esta obra está destinada a ser um caso de amor ou ódio. E o que a torna interessante é que nos seus 125 minutos tanto a amamos como a detestamos...Sem pin-upsAs pin-ups, também conhecidas como starletes, já não existem na praia da Croisette. Nos anos 1990 ainda havia vestígios das famosas jovens que posavam de peito ao léu para os fotógrafos empolgados. E não existem só porque, de repente, os paparazzi se fartaram delas. Nada disso, a Câmara de Cannes é que começou a estabelecer regras. Pura e simplesmente, a polícia municipal não deixa. Nem pin-ups nem festas depois das 2h00 da manhã. Outra das razões prende-se com o fim dos Hot d"Or em Cannes. Os Hot d"Or, prémios da indústria porno, realizavam-se em Cannes como evento paralelo ao festival. Desde o boom da pornografia na net que a cerimónia terminou. Agora, no passeio da marginal de Cannes, o que se vê essencialmente é miudagem a dançar hip hop, homens-estátua e jovens hospedeiras vestidas com tops apertados a oferecer panfletos. Os tempos são outros e o folclore da Croisette já não é o que era...