Dia do beijo

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Alguém, já não sei quem, ofereceu-me um dia um postal a preto e branco. Talvez finais de 1993. No postal, uma rapariga e um rapaz beijam-se. Deram-me o postal por uma razão, a rapariga que beija o rapaz era muito parecida com a minha namorada.

O postal andou vários anos pelo meu quarto, entre paredes e placards de cortiça. Os bilhetes de concertos iam-se acumulando, os horários da escola renovando, os heróis recortados ao sabor do momento, uns amigos davam lugar a outros, mas o postal ia por lá continuando. Esteve no meu campo de visão a maior parte da adolescência. Deixou de ser postal, passou a fazer parte da família de fotografias. Conheço-o bem. Sob o riso atento de três raparigas, uma rapariga beija um rapaz. Durante muito tempo era apenas esse beijo que via, e as semelhanças da autora que me intrigavam. Ela ligeiramente mais alta do que ele, ligeiramente inclinada para a frente, foi ela, certamente, quem fez a aproximação final. Os braços trá-los ao longo do corpo, talvez tudo aquilo fosse um jogo, e o beijo tivesse apenas de ser cumprido. Ele, gentil, reservado, toca-lhe no braço. Os corpos aparentemente não.

Por trás, à esquerda, a vida, três raparigas atentas, intrigadas, rindo, espantando a vergonha nervosa. Parece mesmo um jogo. Bate-pé? Talvez hoje estivessem as três de câmara apontada ao par que se beija em leveza. No beijo que ficou estão alheios a tudo. Lembrarão aquele beijo? Permanecerão amigos? Por onde andam? Como Ruy Belo no poema "Oh as casas as casas as casas", a questão é sempre "onde estarei eu hoje em pequeno?". Ter-se-ão reencontrado no Facebook? Talvez.

A partir de uma certa altura passei a dar atenção à rapariga da direita, pensativa, com um dedo junto à cara. Possivelmente a roer uma unha. Exclui-se da cena, mas sem ela não havia uma das mais belas fotografias. Hoje estaria decerto a olhar para o telemóvel, ou a falar (a mão junto à cara poderia indicar isso, houvesse telemóveis nos anos 80). Quer e não quer estar ali. Está desconfortável. Em que pensa? O que teme? Seria a próxima a beijar o rapaz? Afastada do centro, não olhando, é ela a consciência de tudo aquilo. Não é fácil compreendê-la. Não é fácil olhar para ela, inspira pudor, mais do que o beijo.

As quatro raparigas estão encostadas a uma pedra. As roupas já em 92 eram muito antiquadas, a frágua, tudo aquilo sempre me pareceu passado numa aldeia, no campo, seja isso o que for.

O postal não sobreviveu a uma mudança de quarto (mais do que mudar de casa, mudamos de quarto). Duas ou três vezes vi-o à venda em livrarias, papelarias, nunca o recomprei, perdi-o de vista. Até ontem, que me apareceu no mural do Facebook. Foi através do Luiz Carvalho, o autor da fotografia, que a recordou a propósito do "dia do beijo". Eu conhecia a fotografia, e sabia quem era o Luiz Carvalho, um dos maiores da nossa fotografia, mas não sabia que a minha fotografia era do Luiz Carvalho. Nem sabia que era em Lisboa. Nem sabia que era em 1982. Acredito que tudo isto estivesse escrito nas costas do meu postal, mas nunca olhei para as costas do meu postal, postais com fotos destas não têm costas.

Olhando hoje para a fotografia, 15 anos depois de a ter visto pela última vez, vejo de imediato coisas que nunca tinha visto, o rio e os barcos, e à direita, ao fundo, um rapaz com aquela inclinação do corpo de quem joga à bola, contornando de forma perfeita o braço da rapariga tímida. Aquilo que sempre tinha sido uma frágua serrana é a Estátua do Adamastor, no Miradouro de Santa Catarina, a aldeia é Lisboa. Vejo as coisas que não interessam, as mochilas no chão, a marca não bronzeada no pulso de uma das raparigas. Deve ser fim de verão.

De impulso, falei a frio ao Luiz Carvalho, contei-lhe a ligação que tinha à fotografia que era dele e agradecendo por me ter feito recordar uma parte de mim. Foi de uma amabilidade e gentileza extrema. A singularidade de haver um dia do beijo permitiu-me agradecer-lhe as grandes fotografias que tem feito por nós, do Expresso à Grande Reportagem, e em tantos meios.

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