Desvendada rota do maior surto de febre-amarela no Brasil em cem anos
Quando o maior surto de febre-amarela do último século, no Brasil, se revelou em toda a sua extensão, no ano passado - chegou às cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, e parecia imparável -, a entidade regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as Américas percebeu que se impunha investigar o mais depressa possível o que se estava passar e pediu ajuda a especialistas no terreno. Foi assim que o investigador português Nuno Faria, da Universidade de Oxford, entrou em campo.
No ano anterior, tinha sido Nuno Faria, com a sua equipa, a traçar a rota da epidemia de zika no Brasil. Eles, que já conheciam o terreno e tinham as ferramentas genéticas certas para isso, podiam fazer o mesmo trabalho para a febre amarela: perceber a origem e a dinâmica daquele novo surto, primeiro passo para lhe pôr cobro bem depressa. Foi isso que os investigadores fizeram, aplicando pela primeira vez aquela metodologia genética a esta doença, que é causada por um vírus e transmitida por um mosquito, o Aedes aegypti.
O resultado desse trabalho, publicado hoje na revista Science, mostra como aquele surto se desenrolou desde julho de 2016, primeiro silenciosamente, a partir do coração da Amazónia, e depois às claras e a grande velocidade até ao interior dos bairros de São Paulo. Estaria a febre-amarela a transformar-se numa doença urbana? Era essa a pergunta inquietante que andava no ar.
"Havia a hipótese de a transmissão daquela doença estar a transitar de um ciclo silvestre, em que a transmissão do vírus ocorre predominantemente entre primatas não humanos e mosquitos da floresta, para um ciclo urbano, onde ela ocorre entre humano,s e é mediada pelo mosquito Aedes aegypti, abundante nas grandes metrópoles brasileiras", explica Nuno Faria.
Traçando rapidamente o genoma das estirpes do vírus, recolhidas em amostras de inúmeros doentes, dos casos iniciais em Minas Gerais, até aos mais tardios, já em março deste ano, quando o surto foi finalmente debelado, o trabalho de Nuno Faria demonstrou que não havia ali a tal assinatura urbana.
A origem do surto foi, uma vez mais, um qualquer reservatório - um animal, mais do que um, e quais continuam a ser mistérios - que reside na floresta amazónica. Mas, sobretudo, o trabalho demonstrou a eficácia das novas tecnologias da sequenciação genómica desenvolvidas pelo próprio grupo para estudar a propagação desta doença.
"Os surtos de febre-amarela não têm beneficiado de chamada "revolução genómica," que permitiu investigar em detalhe os surtos de zika e ébola, por exemplo", explica Nuno Faria ao DN. Depois do seu trabalho, já não é assim.
Com este estudo, a equipa de Nuno Faria descreve o seu novo método que consegue "gerar genomas de vírus em menos de 48 horas", graças a "um aparelho portátil que cabe na palma da mão", e que permitiu à sua equipa produzir cerca de metade de todos os dados em apenas uma semana. Um avanço enorme, se se pensar "que há menos de três anos este processo era moroso, caro e apenas disponível em poucas instituições brasileiras".
A mudança é enorme e pode no futuro ser decisiva para a monitorização, e quem sabe, a erradicação desta doença. "As ferramentas genómicas e epidemiológicas desenvolvidas neste estudo podem facilmente ser disponibilizadas nos laboratórios centrais de saúde pública para otimizar estratégias de combate a epidemias futuras de febre-amarela ou de outros vírus em tempo real", garante Nuno Faria.
"A febre-amarela mata cerca de 125 pessoas por dia no mundo, e apesar de haver uma vacina extremamente eficaz, existem ainda 400 milhões de pessoas não vacinadas em áreas em risco de transmissão", explica Nuno Faria.
Esse foi, de resto, um dos fatores que acabou por favorecer a maior dimensão deste último surto da doença no Brasil, que infetou mais de duas mil pessoas, 676 das quais morreram.
Depois de surgir em Minas Gerais, em Julho 2016, o vírus acabou por se espalhar rapidamente "em populações locais de mosquitos silvestres e primatas não humanos, a uma velocidade média de 3,3 km por dia e em direção às grandes cidades de São Paulo e Rio de Janeiro", possivelmente em resultado "do transporte de mosquitos infetados em camiões, ou tráfico ilegal de primatas não humanos", conta o investigador. E explica: "As nossas análises mostram que os casos de febre-amarela em humanos [naquela primeira fase] ocorreram sobretudo em homens, na maioria trabalhadores rurais que viviam em média a cinco quilómetros de áreas florestadas e que, infelizmente, não tinham sido vacinados".
A dimensão que o surto acabou por atingir fica a dever-se, muito provavelmente, a uma conjugação de fatores, "que incluem as alterações climáticas, a intensa desflorestação na região Amazónica e a falta de vacinação em municípios que já não tinham casos de febre-amarela há muitas décadas".
Para Nuno Faria, além das novas tecnologias genómicas que passam a estar disponíveis para a monitorização desta e de outras doenças transmitidas por mosquitos, a publicação do artigo na revista Science tem também a grande vantagem de dar "visibilidade à investigação em febre-amarela, que é necessária para atrair mais investigação e financiamento, de forma a eliminar futuros surtos no mundo", garante.
"Apesar de ser um dos agentes patogénicos mais importantes na história humana, a investigação em febre-amarela tem sido subfinanciada, quando comparada com outras doenças", diz.
Pela sua parte, vai continuar a trabalhar nesse sentido. Em projeto tem já a criação de uma rede integrada de vigilância genética, molecular e epidemiológica de vírus transmitidos por mosquitos, como zika, dengue, chikungunya e febre-amarela, entre o Brasil, Angola e Cabo Verde. "Quanto mais rapidamente soubermos o que circula num lado do mundo, mais depressa poderemos preparar-nos para um surto no outro lado do Atlântico", conclui.