Desgoverno. Nova fase na coabitação Marcelo-Costa: agora comunicam por carta 

Costa quer instituir um mecanismo prévio de deteção de esqueletos no armário das personalidades escolhidas para o Governo e explicou-o por escrito ao Presidente. Marcelo decidiu também responder por escrito. Nem um nem outro divulgam as cartas.
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Algo de substantivo parece ter mudado na até agora tranquila coabitação entre o Presidente da República (PR) e o primeiro-ministro (PM). Agora os dois comunicam por escrito, em cartas que permanecem secretas, com uma distância e um formalismo que nunca antes se tinha visto entre os dois.

Citaçãocitacao"Irei propor ao senhor Presidente da República que consigamos estabelecer um circuito entre a minha proposta e a nomeação dos membros do Governo que permita evitar desconhecer factos que não estamos em condições de conhecer e garantir maior transparência e confiança de todos no momento da nomeação."

O tiro de partida neste novo modo de comunicação foi dado pelo primeiro-ministro. Esta sexta-feira de manhã, via Lusa, António Costa fez saber que na véspera à noite tinha escrito uma carta ao PR a explicar-lhe a novidade que avançara nessa tarde no Parlamento: a de criar um mecanismo de escrutínio do "cadastro" das personalidades convidadas para integrar o Governo antes destas serem formalmente nomeadas. Ou, dito de outra forma, um mecanismo destinado a evitar a repetição de casos como os de Miguel Alves (secretário de Estado adjunto do PM), Alexandra Reis (secretária de Estado do Tesouro) e Carla Alves (secretária de Estado da Agricultura), todos forçados a demitirem-se por via da revelação de casos do seu passado.

Citaçãocitacao"O Presidente não se pode substituir ao primeiro-ministro [e] se o Presidente passa a formar ele os governos o sistema passa a ser presidencialista."

"Irei propor ao senhor Presidente da República que consigamos estabelecer um circuito entre a minha proposta e a nomeação dos membros do Governo que permita evitar desconhecer factos que não estamos em condições de conhecer e garantir maior transparência e confiança de todos no momento da nomeação", anunciou António Costa no Parlamento.

Horas depois, na quinta-feira à noite, a resposta do PR consistiu num rotundo "não", insinuando mesmo que o chefe do Governo o estaria a tentar corresponsabilizar abusivamente por escolhas de governantes: "O Presidente não se pode substituir ao primeiro-ministro [e] se o Presidente passa a formar ele os governos o sistema passa a ser presidencialista."

Marcelo rejeitou com estrondo a ideia argumentando ainda, nas declarações de quinta-feira à noite, que esse mecanismo "para apurar problemas de legalidade, problemas de constitucionalidade ou problemas de impedimentos relativamente a quem vai ser nomeado para determinados cargos", a existir, deveria funcionar "antes de o Governo apresentar a proposta [ao Presidente da República]". "Eu acho que tudo o que seja melhorar o grau de controlo prévio daquilo que se rebentar a seguir é uma complicação, porque já há uma nomeação e depois é preciso ou o exercício de funções com uma fragilidade política à partida ou até mesmo a substituição de novo, tudo o que seja feito nesse sentido deve ser feito antes, antes mesmo de o Presidente da República receber a proposta do primeiro-ministro", insistiu.

Face ao sonoro "não" do Presidente da República, o Governo teve de dar um passo atrás. Esta sexta-feira, na conferência dos 50 anos do Expresso na Fundação Champalimaud, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, esclareceu que "a ideia não é passar o escrutínio para o Presidente". É antes "que exista um momento antes da nomeação, exterior ao Governo, para se ter acesso a informação de que o Governo não dispõe" porque "está limitado no acesso a informação não pública", nomeadamente informação de cariz "judicial, fiscal ou contributivo".

"Algumas das coisas que se pede para que se perguntem não são coisas que um membro do Governo possa aceder", por questões de privacidade e esses "detalhes" costumam chegar "depois por outras vias com outros recursos". Assim, concluiu, o que se precisa é de um mecanismo "formal" e "exterior ao Governo".

Citaçãocitacao"Não vou dar resposta ao primeiro-ministro pela televisão. Seria uma indelicadeza."

Cabia ao Presidente da República encerrar essa conferência. Marcelo assim o fez e depois, respondendo a jornalistas, voltou a comentar o tal mecanismo de prevenção de esqueletos no armário proposto pelo PM. Fê-lo dizendo que, como Costa lho tinha explicado por carta, fora também por carta que lhe respondera, depois de fazer algumas "diligências" (não especificou quais). Quanto ao conteúdo da carta, não o revelava: "Não vou dar resposta ao primeiro-ministro pela televisão. Seria uma indelicadeza."

Seja como for, sempre foi dizendo que neste escrutínio prévio dos escolhidos "não é possível" ao poder político ter acesso a factos em segredo de justiça. E, mais uma vez, sublinhou que não se corresponsabiliza pelas escolhas, resultando estas de "juízos políticos do primeiro-ministro". Quanto ao escrutínio, voltou a confiar no jornalismo: "O escrutínio é da comunicação social."

Citaçãocitacao"O Presidente da República, perante aquilo que parecia para muitos um coro de críticas em relação à governação apontando quase para a dissolução, disse: não, não contem com a dissolução. Agora, é fundamental que o Governo governe e governe bem."

Marcelo aproveitou também para reafirmar o seu firme compromisso com a ideia de estabilidade. Mais claro do que nunca - e afirmando-se de uma "estabilidade institucional total", assegurou: "O Presidente da República, perante aquilo que parecia para muitos um coro de críticas em relação à governação apontando quase para a dissolução, disse: não, não contem com a dissolução. Agora, é fundamental que o Governo governe e governe bem." Segundo reforçou, esta estabilidade política é imperativa pelo menos este ano dado que é o último sem eleições antes das legislativas (outubro de 2026). "Não, não contem comigo com isso. Contam comigo para ter o mesmo comportamento institucional que tive durante sete anos", insistiu, sublinhando também a importância de ser usar este tempo a todo o vapor para "usar os fundos do PRR".

Questionado pelos jornalistas, Marcelo acabou para também por considerar a demissão da secretária de Estado da Agricultura Carla Alves como uma "questão ultrapassada" - ou seja, não pede a cabeça da ministra da pasta, Maria do Céu Antunes. Costa, momentos antes, falando em Braga - onde foi visitar mais uma obra financiada pelo PRR - tinha dito o mesmo: "O caso está encerrado."

Esta sexta-feira, o Público noticiou que, antes de tomar posse, Carla Alves informou a sua ministra do problema judicial do seu marido (Américo Pereira, acusado de vários crimes alegadamente cometidos enquanto foi presidente da câmara de Vinhais). O gabinete da ministra assegurou em comunicado o contrário: Maria do Céu Antunes "não tinha conhecimento de qualquer envolvimento de Carla Alves em processos judiciais".

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