"A minha eleição foi obra do Senhor", diz uma parlamentar, instantes depois de cantar, com muitos améns e aleluias, num culto evangélico realizado em plena Câmara dos Deputados do Brasil, um país laico. Pelo exotismo, a cena é, aos olhos portugueses, uma das mais chamativas de "A Câmara", obra de Cristiane Bernardes e de Tiago de Aragão, cuja estreia mundial está marcada para outubro no Doc Lisboa..Do início ao fim, entretanto, o documentário brasileiro mostra como a imensa minoria de deputadas brasileiras encara uma rotina de desafios: a mera necessidade de amamentar os filhos em pleno gabinete após uma intensa discussão em plenário, é um deles; ouvir constantemente dos pares masculinos a recomendação para ter "calma" sem perder, de facto, a calma, é outro..Mas "A Câmara", filmada entre maio e julho de 2022, quando já se vivia o ambiente de pré-campanha eleitoral para as eleições gerais do outubro seguinte, vai além da guerra parlamentar dos sexos: é um raro documento dos últimos suspiros do Congresso Nacional sob a presidência de Jair Bolsonaro..Num estilo conhecido como fly on the wall (mosca na parede), quando os autores, por interferirem o mínimo possível na narrativa, colocam os espectadores no papel de voyeurs absolutos, acompanhamos 17 deputadas integradas em comissões temáticas, da Justiça, da Educação, da Cultura ou da Mulher, a partilhar vídeos dos seus feitos nas redes sociais e em conversas de circunstância, como aquela a abrir o documentário em que Benedita Silva, veterana deputada do PT, o partido de centro-esquerda de Lula da Silva, conta que a elogiada camisa que veste "foi comprada na China em 1995"..Noutro ponto, Greyce Elias, do Avante, de centro-direita, a mesma que canta no culto meia dúzia de cenas depois, ouve de um amigo que ele mora "em Goianésia". "É pertinho, pertinho, são só 200 km", o que transmite aos ouvidos portugueses a escala gigantesca do Brasil..Mas há política pura e dura: num debate televisivo, Alê Silva, do Republicanos, partido na órbita de Bolsonaro, e Sâmia Bonfim, do PSOL, espécie de Bloco de Esquerda tropical, discutem "racismo estrutural". Alê diz que os negros são usados como massa de manobra e declara-se contra a política de quotas porque há brancos pobres e negros ricos e Sâmia, já após o debate, alerta-a de que arrisca processo "porque racismo é crime". A discussão, tensa, prossegue..Na comissão da Mulher, a mesma Sâmia, ao lado da colega de partido Vivi Reis, encara deputados de direita sobre o aborto, tema então ainda mais controverso do que de costume por causa da decisão de Damares Alves, a ministra dos Direitos Humanos de Bolsonaro, de obrigar uma menina de 11 anos violada a manter a gestação..Na comissão da Educação, entretanto, Adriana Ventura, do Novo, o Iniciativa Liberal brasileiro, e Paula Belmonte, do Cidadania, de centro, criticam as greves dos professores, para indignação da Professora Marcivânia, docente além de deputada, como o nome de guerra indica, e Alice Portugal, ambas do Partido Comunista do Brasil. Lídice da Mata, experiente deputada do PSB, o partido de centro-esquerda do atual vice-presidente Geraldo Alckmin, sai em defesa das duas últimas, acusando o governo Bolsonaro de descaso com a Educação por já ir no quinto ministro do setor..O filme acompanha ainda duas deputadas do PP, de centro-direita, que ganharam protagonismo na política nacional já em 2023. Celina Leão assumiu, em janeiro, o governo do Distrito Federal depois da suspensão do titular, Ibaneis Rocha, por suposta incúria durante os atos de vandalismo de 8 de janeiro, e Margarete Coelho é apontada como provável nova presidente de um banco estatal por indicação de Lula..Celina, uma das vítimas do "calma, senhora deputada, calma" vindo de uma voz masculina, ao qual ela reage com um "eu estou calmíssima", conta numa entrevista de TV como foi o encontro de mulheres deputadas com Bolsonaro no Palácio da Alvorada. E Margarete ouve de pares deputados que o termo "movimento social" num projeto de lei perturba tanto a esquerda como a direita. "Então tira movimento social", resolve ela..E acrescenta: "A política vive de polarização mas o objetivo é atingir consensos, o importante é o que nos une e não o que nos separa, mas respeitemos o que nos separa".