"Emborquei um frasco de veneno de escaravelho e safei-me nem sei como..." É o que, após introdução em off, se ouve no escuro, dito por quem rasteja, a sair duma caixa, lanterna de mineiro acesa na testa. Alguém que, adiante, conta: "Eu vi o terror. Eu presenciei o horror. O pior de tudo: o sangue a pintar a língua da terra." Saída das entranhas da terra com língua pintada de sangue, ou do caixão de que se safou sem saber como, a figura do "desespero" e do "desastre" é encarnada por Fernanda Lapa, em Ódio, de Jorge Humberto Pereira, que evoca a guerra colonial e ganhou o Prémio Bernardo Santareno - SPA 2005. Na Galeria Graça Brandão, o coreógrafo-bailarino Francisco Camacho encena, para a Escola de Mulheres, uma espécie de instalação, criada com a cenógrafa Ana Vaz. Da estreia em Santarém para Lisboa, Ódio fica aqui até 10 de Dezembro.. Fernanda Lapa, de macacão cingido em tom cru e depois de camuflado, actua numa floresta de caixotes e candeeiros, de onde fará sair miniaturas de tanques e aviões de guerra, helicópteros, bichos da selva, soldados armados e até uma Barbie ou, em tamanho natural, facas, marmitas, tachos, cantis, rações de combate, bouquets de rosas vermelhas. Porque, explica ao DN, "isto não podia ser feito no registo realista, sendo o texto tão duro". .É duro e cru como não podia deixar de ser e não só pela linguagem de caserna mas também para transmitir o ódio florescente até ao infinito no caldo de cultura da guerra e, claro: "O medo. O medo. O medo. E a f... que é ter medo... (...) A f... que aquilo era."Que foi, seria, é e será sem fim. Só a performance o tem, concluída emvoz off exprimindo a infinitude: "No meu sonho, eu existo sempre e isso faz-me acordar sobressaltado." Como a actriz directora da Escola de Mulheres lembra: "Continua-se a ir para a guerra, agora não é a guerra colonial, são outras. E o Stress Pós-Traumático continua a existir. E ninguém fala nisso.".Como escreveu no programa, a peça "não é um monólogo de um monstro, mas de alguém que passou os limites da dor". Membro do júri da SPA que a premiou, Fernanda Lapa decidiu interpretá-la, depois de ler, num jornal, este depoimento: "O meu marido esteve 24 meses no Ultramar, mas eu estou em guerra há 40 anos, desde o dia em que casei." Aí chama-se "PTSD induzida" e afectará em Portugal 80 mil mulheres de ex-combatentes com SPT. Fora as ausentes da estatística e as que também lá foram. À actriz, o drama foi próximo, geracionalmente e no trabalho, enquanto assistente social, a reabilitar estropiados de guerra, com Santareno na função extraliterária de médico/psicólogo. .Agora tenta "passar pela pele do ex-combatente, no milagre do teatro", a compreender "coisas que não compreendia". Francisco Camacho, que já fora seu assistente de encenação, é o cúmplice escolhido. Que, diz-nos ele, se desviou da "dramaticidade reiterativa" para "certa abstracção, um jogo no plano simbólico", em "construção, desconstrução, reconstrução" de adereços, paralela à do texto, a apostar "na fisicalidade" e "numa lógica coreográfica".