"Declarações anti-Erdogan ou anti-Turquia são preconceituosas"

Ministro dos Assuntos Europeus, Ömer Çelik é o primeiro governante turco a visitar Portugal depois do golpe de 15 de julho. Veio procurar apoio para que a UE cumpra as promessas de financiar o apoio aos refugiados e de liberalizar os vistos para os cidadãos turcos. Queixa-se da falta de solidariedade dos líderes europeus
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Li há dias um artigo seu no El País onde é duríssimo com a União Europeia, à qual acusa de falta de solidariedade com a Turquia. Porquê este choque hoje entre a UE e a Turquia, com responsabilidades de ambos os lados?

Recordo a tentativa de golpe que ocorreu a 15 de julho, feita num país localizado em território europeu e contra uma democracia europeia, e durante a qual caças, navios de guerra e helicópteros atacaram o povo turco e as instituições turcas, pretenderam matar o presidente, bombardearam o Parlamento, tentaram matar o primeiro-ministro. Mais de 240 pessoas morreram. Cinco mil civis ficaram feridos. E no entanto no mês depois da tentativa de golpe não recebemos qualquer visita oficial, de alto nível, de líderes da UE. Satisfizeram-se em fazer declarações de condenação. Foi uma espécie de teste à UE e ela falhou.

Considera que a Turquia merecia solidariedade e esta não existiu?

Sim, os líderes da UE deveriam ter vindo visitar a Turquia. Ao mais alto nível da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu. Mas passou um mês inteiro desde a tentativa de golpe e isso não aconteceu. Sim, Martin Schulz visitou a Turquia entretanto, mas foi mais de um mês depois. Compare com o que aconteceu depois do ataque contra o Charlie Hebdo . Foi uma atitude sábia irmos lá mostrar solidariedade ao povo francês. Foi a atitude correta, porque enviámos uma mensagem ao mundo. Agora compare: nos últimos seis meses aconteceram dez ataques terroristas em larga escala na Turquia. Mesmo assim, depois da tentativa de golpe, e um golpe é uma séria ameaça que pode acontecer em qualquer país, os líderes da UE limitaram-se a fazer declarações a condenar, mas deveriam ter vindo à Turquia. E logo na primeira semana. Para mostrar que estavam connosco. Deveriam ter vindo mas em vez disso permaneceram nas respetivas capitais, fizeram declarações de digamos dez parágrafos com o primeiro a condenar o golpe e os restantes a criticar as medidas tomadas pela Turquia.

É conhecida a complicada relação entre a UE e a Turquia. Há mais de 50 anos que existe a ideia de adesão, sempre adiada. Neste momento, pensa que persiste o velho preconceito contra a Turquia ou há um novo preconceito contra o presidente Erdogan?

As negociações entre a Turquia e a UE acontecem, como disse, há mais de 50 anos. É muito tempo. Na verdade, mais tempo até do que os anos todos de existência de alguns países. É um facto. Um facto também, não uma interpretação, é que, com base nos critérios de Copenhaga e de Maastricht, a capacidade que a Turquia mostrou ultrapassa a de alguns dos países da União Europeia. Quando estamos reunidos com os nossos parceiros da UE, e conversamos em privado, dizem que é só por a Turquia ser um país muçulmano que não conseguirá tornar-se um membro de corpo inteiro. Ouvindo este tipo de opiniões começamos a interrogar-nos se a UE vai continuar a ser um clube cristão. Começamos a perguntar-nos se algumas pessoas, alguns grupos, não estão a esconder-se por trás da desculpa da população da Turquia ou da economia da Turquia. A Turquia já provou de forma convincente que sai das crises ainda mais forte. E nunca se tornando um fardo às costas da União Europeia, pelo contrário. Sim, há alguns preconceitos contra a Turquia e se não for possível ultrapassar esses preconceitos será difícil atingir a união de valores. Aquilo que existe por trás de declarações anti-Erdogan ou anti-Turquia são preconceitos.

Mas considera que existe ou não um preconceito da União Europeia em especial contra o presidente Erdogan?

Sim, existe antagonismo também contra o presidente da nossa república, sobretudo da parte de alguns líderes que estão a ceder a grupos inclinados para a extrema-direita . Sim, têm feito declarações inteiramente anti-Erdogan, além de anti-Turquia. Mas o que se esconde por trás disto são os círculos eurofóbicos, os eurocéticos. Infelizmente, alguns grupos políticos normais acabam por ser engolidos por grupos de tendência de extrema-direita. O mais recente exemplo disto aconteceu durante a campanha sobre o brexit, quando o então primeiro-ministro Cameron adotou uma retórica anti-turca e acabou por perder o referendo e o cargo. Olhe-se para os últimos seis meses na Alemanha, onde tem havido eleições regionais, e os políticos tradicionais que insistem numa retórica anti-turcos acabam por perder. As declarações ou políticas anti-Erdogan não estão em conformidade com os valores da UE. Só servem para a escalada dos populistas.

Há dificuldade em perceber a dimensão da repressão pós-golpe e porquê tantas pessoas presas. Em Portugal também, até porque foi o primeiro país europeu a abolir a pena de morte, é mal recebida a possibilidade de a Turquia repor a pena capital. Consegue justificar esta repressão e a insistência no regresso da pena de morte?

Alguns dos que têm feito críticas sobre as medidas adotadas pelo governo turco depois da tentativa de golpe não conhecem o seu conteúdo. Houve gente com armas ou a bordo de helicópteros tentando matar turcos. Dos golpistas morreram 40 naquela noite. Mas 240 dos nossos cidadãos, civis, morreram e milhares de outros ficaram feridos. Tivesse o governo turco tomado medidas revanchistas e as coisas teriam sido muito diferentes, acredite. A Turquia está comprometida com a democracia, o primado da justiça e os diretos humanos. Não estamos numa política de vingança. O que queremos é trazer os golpistas e seus cúmplices a tribunal. Paralelamente a isto, há também quem se interrogue porque foram alguns jornais fechados. Há o exemplo de um que publicava colunas de opinião a incentivar os terroristas a matarem mais civis na Turquia e isso é um crime. Quando se ordena o encerramento de um jornal desses não é um ataque à liberdade de imprensa. Em relação à pena de morte, note-se que aquelas pessoas envolvidas no golpe adotaram tamanha violência contra o povo turco que o povo turco teve de resistir e claro tem forte ressentimento. Há muita gente que pede que a pena de morte seja restabelecida. Acho que esta reação é compreensível e nós como políticos temos de ouvir o nosso povo mas de momento não há qualquer decisão sobre o restabelecimento da pena de morte.

Outra preocupação é a situação dos refugiados que a partir da Turquia tentam chegar à Europa. Vai a tensão entre a UE e a Turquia afetar o acordo para controlo do fluxo de refugiados? Há novidades ou os dois lados cumprem?

Nada de novo. A Turquia acolhe cerca de três milhões de refugiados. E gasta, dos seus próprios recursos, 25 mil milhões de dólares com as necessidades dos refugiados. E nesta matéria a UE não tem sido de grande ajuda. A UE prometeu dois mil milhões de euros para ajudar os refugiados na Turquia mas isso é só em teoria. E há alguns Estados da UE que estão reticentes em aceitar refugiados e até querem fazer referendos. Há outros Estados membros que têm feito declarações racistas, como a Áustria. Todos os dias ouvimos os líderes da UE falar em democracia e em direitos humanos, mas quando nos deparamos com a realidade, por exemplo com este tema dos refugiados, vemos como aplicam esses princípios em termos práticos. Sobre o que é preciso fazer no futuro, bem, temos estado a implementar o sistema um por um e no passado havia milhares de pessoas a passar da Turquia para a Europa e agora baixou para dez ou 20 por dia. Mas infelizmente a crise migratória vai crescer , com origem no Médio Oriente e Norte de África. Assim, o atual mecanismo do um por um não será suficiente perante a escala do que pode acontecer. Parte disto tem que ver com a liberalização de vistos que foi prometida à Turquia. E se a UE não cumprir a promessa de liberalização a Turquia não implementará a readmissão.

Esteve reunido com as autoridades portuguesas. Qual a perceção com que ficou sobre como o país lida com o tema dos refugiados?

Na maioria dos casos, partilham connosco a mesma visão. E esperamos o apoio das autoridades portuguesas em termos de liberalização dos vistos. E também da disponibilização do fundo que foi prometido à Turquia. Dos três milhões de refugiados que a Turquia acolhe, metade são crianças, que têm necessidades urgentes em termos de saúde e de educação. Para responder a essas necessidades, a Turquia tem dado o seu melhor. E por isso essa a importância da ajuda financeira europeia, que não é para a Turquia mas sim para poder acudir a essas necessidades dos refugiados. Se os líderes europeus estiverem mesmo interessados venham visitar os campos de refugiados.

Explique-me a estratégia turca na Síria: por um lado defende o derrube do regime de Assad e apoia quem o combate, por outro ataca o Daesh e também os grupos curdos. Como pode um país lidar com três alvos ao mesmo tempo?

Gostava de fazer desde já uma correção. As forças turcas não estão a lutar contra grupos curdos, estão sim a lutar contra o PKK e os aliados desta organização terrorista. E porque é importante notar isto? Porque também quando a Turquia está a lutar contra o Daesh, não está a lutar contra muçulmanos, está a lutar contra terroristas. E sim é verdade o que diz. A Turquia está a lutar contra uma multitude de inimigos. Contra o Daesh, contra o PKK e o PYD e contra o regime de Assad, que tomou ações contra o Estado turco. Penso que isto revela a grande capacidade da Turquia. Como sabe, 55 países juntaram-se na coligação internacional que combate o Daesh e até agora não foram capazes de limpar as fronteiras NATO. Mas nos últimos 15 dias as forças turcas entraram em Jarablos e foram capazes de limpar a fronteira da NATO da presença de elementos do Daesh. Penso que é revelador das capacidades de alto nível das nossas forças armadas. Dadas as circunstâncias, a questão que se coloca aos nossos aliados é que ajuda vão dar ao esforço turco pela segurança europeia. Quando a retórica se vai transformar em solidariedade prática?

Como estão as relações com a Rússia ? Há quem diga que melhoraram depois da tentativa de golpe, mas na verdade a normalização começou ainda antes. É vital para a Turquia resolver as tensões?

Ao longo da história a Turquia e a Rússia têm desenvolvido forte cooperação. Sim, durante um curto período de tempo houve os problemas que sabemos, mas agora há uma normalização, mesmo que os dois países discordem em relação à política para a Síria. Temos uma grande cooperação em termos de energia, turismo, economia e cultura. A Rússia é uma grande potência e conhece bem a Turquia como a Turquia conhece bem a Rússia. Vamos ter de conversar mais com os russos. Algumas vezes também se pergunta se a Turquia vai cortar as relações com o Ocidente e tornar-se mais próxima da Rússia. Quem costuma dizer isto são aqueles que não nos apoiam com firmeza. O que dizemos é que a Turquia continuará a ter as suas alianças tradicionais. E novas relações não vão ser alternativas às existentes com a NATO.

O vice-presidente Joe Biden foi à Turquia. O que significa para a relação turco-americana? Muito depende do modo como se processa o pedido de extradição de Gülen?

Fethullah Gülen é um terrorista. Entre a Turquia e os Estados Unidos existe um acordo de extradição. E o lado americano garante que cumprirá os seus deveres legais. Nos termos deste acordo, o país que recebe o pedido de extradição ou extradita ou detém a pessoa no período em que os procedimentos legais estão a decorrer. Mas Gülen continua em liberdade, continua a controlar a sua organização. E a sua organização terrorista é muito mais perigosa do que o Daesh e a Al-Qaeda. O facto de Gülen viver livre num país aliado da Turquia não está certo e a nossas esperança é que o lado americano aplique os procedimentos legais.

Regressando à Europa. Qual é o atual nível de apoio popular à entrada na UE? Ainda é um sonho para o povo turco ou é algo que as pessoas deixaram de acreditar?

O povo turco é realista. Na medida em que a UE seguir critérios objetivos na sua relação com a Turquia, o nível de apoio dos turcos à adesão cresce. Mas quando a UE mostra preconceito com a Turquia, aplica dois pesos e duas medidas, o apoio entre os turcos à adesão diminui. Ser um dia membro de pleno direito da UE é uma política de Estado da Turquia. E nesse sentido criámos o ministério da Europa. Assim, a politica turca em relação à UE não mudou. Permanece a mesma. O resto está nas mãos da UE e depende de que género de futuro a UE quer. A Turquia como membro da UE seria bom para todo o continente.

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