De Isabel II a Carlos III: o desafio da continuidade 

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O fascínio que a monarquia, em particular a britânica, exerce sobre as pessoas é inegável. Até o republicano mais empedernido reconhecerá que os históricos acontecimentos dos últimos dias provam que o caráter unificador da figura do soberano inglês, qualquer que seja, tem um valor simbólico enorme, a que corresponde uma assinalável força política, social e até militar.

Num tempo em que os reis, pelo menos na Europa, não governam e são sobretudo figuras representativas da nação, pairando acima dos partidos, dos governos e das grandes decisões que afetam o dia a dia das pessoas, não deixa de ser curioso, quase insólito, que se fale, como Liz Truss falou, de uma "era isabelina", ou, nas palavras de Boris Johnson, de "Isabel, a Grande."

Numa democracia esclarecida como a britânica, além disso uma sociedade multicultural, a inexistência de uma contestação republicana minimamente organizada tem de ser caso para estudo e admiração.

Qual é, afinal, o legado que Isabel II, a rainha extraordinária que, ao fim de 96 anos de vida e 70 de reinado, conquistou a eternidade esta semana, deixa ao seu filho, o novo rei Carlos III?

Isabel II soube ler no exemplo de dedicação e entrega dos seus pais, Jorge VI e Isabel, a chave de sucesso do seu reinado. Como o novo rei sublinhou no discurso que dirigiu ao povo britânico e ao mundo a partir do Palácio de Buckingham, essa entrega teve uma dimensão de sacrifício pessoal e de renúncia que escapará aos mais distraídos ou aos que tiverem pouca memória.

Serenamente, Isabel II cumpriu o seu dever dia após dia, durante 70 anos. Lendo diariamente os documentos que lhe chegavam nas red boxes, ouvindo e aconselhando primeiros-ministros, viajando sem cessar. Sem queixas, sem lamentos, com exceção de um momento de grande fragilidade, em 1992, em que chegou a pedir clemência perante a intolerância que sentia da parte da imprensa.

O maior legado de Isabel II, fruto do seu serviço, da sua entrega e do seu exemplo, é uma instituição que, apesar de arcaica, se fez moderna e necessária.

Ninguém como o novo rei de Inglaterra estará tão consciente da enorme responsabilidade que recai sobre os seus ombros. Ao longo de 70 anos como herdeiro do trono procurou ser útil e deixar uma marca positiva na sociedade britânica. Fê-lo através da sua Prince"s Trust, intervindo em questões de mobilidade social, em matéria de ambiente e também em defesa da interculturalidade e do diálogo inter-religioso.

É talvez no estilo que se notarão algumas diferenças no reinado que agora começa. Se Isabel II era serena, Carlos III é, segundo os que melhor o conhecem, um hiperativo, sempre com ideias, projetos e vontade de os pôr em prática. Refreará certamente alguns desses ímpetos, consciente de que está agora sob um escrutínio constitucional mais apertado.

O novo rei tem, contudo, três grandes desafios pela frente. Não são desafios novos, no sentido em que a sua mãe também lidou com eles, mas são desafios constantes.

O primeiro, é o de manter a paz familiar, como alicerce estruturante da monarquia. As tensões familiares, como a sua própria experiência pessoal lhe mostra, têm um potencial corrosivo imenso. Não é por acaso que o momento mais sensível do reinado de Isabel II coincidiu com os problemas familiares que se arrastaram durante a década de 90 do século XX. O novo rei não parece ter a tarefa facilitada.

O segundo desafio será o de manter acesa a chama da Commonwealth. Tendo sido construída, com grande empenho de Isabel II, como uma associação voluntária de países que celebram raízes comuns, a sua defesa não deixa de ser uma tarefa espinhosa. Num tempo em que a mera evocação do passado imperial parece exigir um imediato pedido de desculpas, Carlos de Inglaterra, envolvido desde há muitos anos com a Commonwealth, procurará fazer perdurar este legado da sua mãe.

O terceiro desafio, porventura o mais difícil, é o de manter o seu reino unido. Este tema, particularmente caro à falecida rainha, não depende, em primeira análise, da ação do novo rei. Mas a dissolução da união dos quatro países que compõem o Reino Unido seria vista como um fracasso pessoal. Os resultados eleitorais na Irlanda do Norte, onde pela primeira vez houve uma maioria para os defensores da saída da União, e o contínuo desafio dos independentistas escoceses, apesar dos resultados do recente referendo, constituem ameaças à existência deste Reino Unido, cujo principal fator de união, após a devolução de poderes iniciada por Tony Blair, é verdadeiramente a monarquia.

A estes desafios Carlos III procurará responder com um serviço de "lealdade, respeito e amor", segundo as palavras que escolheu para renovar o compromisso da sua mãe. A monarquia é, afinal, um exercício de continuidade, entre o arcaísmo e o progresso.

Jurista, consultor para Assuntos Políticos e Sociedade.

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