São trezentos objetos reunidos e organizados para a exposição David Bowie Is , que ontem abriu ao público londrino. Pela primeira vez, o Victoria & Albert Museum, uma das instituições mais influentes no mundo das artes e do design , realiza uma mostra tão extensa em torno de um só homem - e a tarefa seria impossível se esse homem não fosse tão múltiplo em talentos, identidades e tempos. . Ao título da exposição - David Bowie É , em português - não falta nenhum complemento. David Bowie é o todo que está exposto. E há tanto para ver: letras de canções escritas à mão, filmes, fotografias, videoclips , instrumentos e obras de arte, muito material privado do artista, etc. E, claro, estão lá também os fatos desenhados para as suas bandas, indumentária de concertos e peças de moda, no total de sessenta figurinos assinados por Bowie, mas também por Alexander McQueen , Kansai Yamamoto e outros grandes nomes da moda internacional. Se há área em que é impossível discordar dos curadores quando dizem que a influência de Bowie nas artes é enorme, e nos dois sentidos, é mesmo esta: a moda. . O designer de moda Dries van Noten já tinha assumido esta fonte de inspiração permanente que é David Bowie, quando após o desfile na semana de moda de Nova Iorque, em fevereiro , em que usou um remix do tema Golden Years como música de fundo, declarou ao Financial Times em XXXX «O período do Thin White Duke é um dos meus preferidos. Creio que o que era avant-garde nos anos 1970 faz parte da psique de hoje.» Lucas Ossendrijver, o designer da men"s wear da Lanvin , é citado no mesmo artigo sobre a influência de Bowie na moda que se viu nas passerelles no ano passado, afirmando que as referências à personagem do cantor britânico não foram intencionais. Mas o facto foi incontestado: em 2012, coleções inteiras de vários criadores recriavam uma persona de Bowie. . Quando o cantor completou 65 anos, em janeiro de 2012, chegaram às lojas de moda as propostas dos designers com looks totais ou parciais à Bowie. As calças de cintura alta com pinças e machos amplos, as cinturas marcadas ou as camisas brancas marcaram as criações de Dries van Noten. A Lanvin colocou o chapéu de gangster ligeiramente desproporcionado para completar o aspeto dandy em modelos de extrema magreza. A androginia já tinha sido evidente na coleção de Tod Lynn para o outono-inverno de 2011. . Este era o Bowie dos anos 1970, nascido na digressão de Young Americans , assumido inteiramente enquanto personagem, alter ego e heterónimo criativo a partir de 1976, com o álbum Station to Station . É o Thin White Duke, uma personagem que encarna o imaginário lírico e decadente ultrarromântico, com conteúdo e figurino a condizer. Duke veste-se sempre de forma irrepreensível com camisa branca, calças de cintura subida e casacos cintados, para cantar canções de amor que já não sente. Deste período é também o filme The Man who Fell to Earth , em que Bowie interpreta a personagem principal, um extraterrestre que usa um chapéu sobredimensionado para esconder as feições. . E é este mesmo Bowie que, a julgar pelas últimas semanas de moda de Nova Iorque, Londres, Paris e Milão, continuará a ditar a moda nas coleções primavera-verão de 2013. O estilista escocês Jonathan Saunders recupera novamente Duke, mesmo se os estampados dos jerseys remetem para Ziggy Stardust, outra persona , anterior, desta vez numa versão arrumadinha. Sarah Burton, para a Alexander McQueen , mostrou uma coleção inspirada nas cores e nos brilhos de Ziggy Stardust, Jean-Paul Gaultier reutilizou o jumpsuit muito ao estilo da persona mais colorida de Bowie numa coleção cheia de referências aos ícones da pop . E Preen foi ao encontro do filme The Hunger , de 1983, em que Bowie contracena com Catherine Deneuve. . Este encantamento que a moda demonstra por David Bowie não é de agora. Rouland Mouret já tinha desenvolvido a coleção para a primavera de 2011 da Mr em torno de Bowie, ainda que de um outro Bowie, aquele major Jack Celliers do filme Merry Christmas Mr. Lawrence , de 1983. E se até agora falámos apenas dos looks pensados para os homens, foi nas criações para senhora que começaram a aparecer os primeiros sintomas desta onda mais recente de inspiração em Bowie. A revista onlineStyle assinalou no princípio de 2011 essa influência, demonstrando a presença do camaleão nos mais diversos desfiles de moda. A Givenchy , sob a direção criativa de Riccardo Tisci, apresentou para a primavera de 2010 um casaco copiado do período glam . Ao mesmo tempo, os jumpsuits e os cabelos vermelhos de Ziggy Stardust foram recriados por Jean-Paul Gaultier, enquanto Chloé fazia desfilar em Paris calças de cintura muito alta em tecidos muito fluidos, como David Bowie usava em 1970. . David Bucley, biógrafo e autor de livros como The Complete Guide to the Music of David Bowie e Strange Fascination: David Bowie - The Definitive Story , partilha da opinião dos curadores da exposição de Londres: «A sua influência foi única na cultura popular - ele entrou e alterou mais vidas do que qualquer outra figura comparável.» E de tal forma o fez que o que foi visto como estranho, desadequado e incompreensível há quarenta anos faz hoje parte da cultura mainstream e concretizou-se plenamente em 2012 na indústria da moda. Mas o processo de aceitação e assimilação de Bowie foi difícil. . O primeiro tema bem-sucedido de David Bowie é de 1969. Oportunamente lançado poucos dias antes da chegada do primeiro homem à Lua, Space Oddity faz a banda sonora de toda a transmissão da BBC, sobre a viagem da Apollo 11. Poucos dias depois o single atinge o top 5 do Reino Unido e o aspeto de David Bowie começa a impressionar, sobretudo pela sua androginia, ainda que a imagem não seja muito elaborada e se confine ao imaginário hippie . Quando, em 1972, surge Ziggy Stardust a personagem está perfeitamente construída, previamente estudada e as aparições de Bowie são sempre performativas, histriónicas, ao ponto de se tornarem o epicentro do movimento glam-rock . As maquilhagens excessivas, o cabelo laranja, o uso de purpurinas e tecidos brilhantes, o aspeto andrógino e, claro, a performance constante fazem deste David Bowie «o Jesus Cristo do glam », como explica o fotógrafo Mick Rock, no documentário Walk on the Wildside . Mas o glam-rock , nessa altura, era a contracultura e não faz a moda. . A aparência cedo provoca incómodo ao senso comum dos anos 1970. David Bowie vai duas vezes ao Russell Harty TV Show, em 1973 e 1975, um famoso talk show britânico, e o tema de abertura é invariavelmente a imagem. Na segunda presença no programa, que assinala o regresso de Bowie à Inglaterra natal, a entrevista é crispada. Quando o apresentador pergunta: «Mas não planeou o seu guarda-roupa? A sua imagem?» Bowie responde incomodado: «Sei que canções vou tocar e isso é a parte importante.» Mas será? . No ano anterior, no Dick Cavett Show da televisão nova-iorquina ABC, já tinha desvalorizado a questão da imagem dizendo que se inspirava no público para criar os seus próprios figurinos. E no entanto, apesar dos suspensórios, do fato completo e da gravata lhe darem um aparente aspeto convencional, uma bengala, os enchumaços nos ombros, os cabelos louros acobreados e a maquilhagem reforçam o aspeto dramático da interpretação que faz dele mesmo. Na verdade, esta forma de estar é já um prelúdio do duque de postura negligée que está para nascer. . Imparável, inconformado, faz surgir o aparentemente sóbrio Thin White Duke em 1976 e a personagem confunde-se com o artista. Pouco tempo depois, Bowie muda-se para Berlim Ocidental e as roupas que usa nas suas performances tornam-se a melhor expressão da moda de rua que se aproxima. Nos anos 1980, o público assume os cabelos assimétricos, com cortes geométricos, e os ombros sobredimensionados com enchumaços evidentes. Nesta década, esses pormenores são assimilados pela arte de vestir. Mesmo assim, no desfile de Yves Saint Laurent de 1980, por exemplo, o excesso dos brilhos desaparece. . A partir daqui é difícil destrinçar se é a moda que influencia o artista se o contrário. Sempre contemporâneo do seu tempo, como um dia afirmou, passa musicalmente pela industrial, techno , dance music , regressa ao acústico, ao rock e os figurinos que escolhe estão sempre de acordo com a música que toca. Mas são sempre o melhor e mais estilizado de cada estilo. E são também sempre aceites pelo público e pela crítica, havendo uma assimilação quase imediata das tendências que Bowie dita. . Onde estamos agora? David Bowie não gravava um disco desde 2003. O longo silêncio foi quebrado e no vídeo do primeiro single do novo álbum, embora remetendo para o período de Berlim, não existem referências significativas à moda. Mas o pequeno filme tornado público com o lançamento do álbum The Next Day , The Stars (are out tonight) , é inteiramente autorreferencial. David Bowie interpreta um homem de meia-idade normal, enquanto o estilo do camaleão dos anos 1970 é glosado por personagens muito mais novas, supostas estrelas mainstream . No decorrer da narrativa, a personagem de David Bowie e a chata mulher interpretada por Tilda Swinton acabam por se reapropriar dos estilos bowianos: primeiro o Young Americans , depois o Thin White Duke , de seguida o major Jack Celliers até chegar ao smoking em brocado dos anos 1990. Os novos tornam-se chatos e o original Bowie retoma o seu lugar de estrela. É aqui que estamos: 2013 volta a ser o ano do senhor David Bowie e na moda também. Depois de a indústria ter desenvolvido o tema até à exaustão, é hora de, como no filme, Bowie voltar a ditar as regras, dizer qual será a próxima moda.