Há 18 meses que ambos entram e saem do Ministério da Saúde, na Avenida João Crisóstomo, em Lisboa, para cumprir aquele que já se está a tornar um dos processos de negociação mais longos da história da classe médica com o poder político. Hoje deveriam regressar ao Ministério da Saúde para mais um encontro, para o qual já levavam "poucas expectativas", mas este foi cancelado ao início da noite de ontem, devido à demissão do primeiro-ministro e à crise política em que o país mergulhou..O acordo que os dois líderes andaram a negociar pode ficar pelo caminho, caso se avance com o cenário de novas eleições, mas, afinal, quem são os líderes que representam os médicos? Joana Bordalo e Sá é especialista em oncologia médica e presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam) desde dezembro do ano passado, Jorge Roque da Cunha é especialista em medicina familiar e secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) desde 2014..A primeira evidência é que têm quase 20 anos de idade a separá-los, duas gerações de médicos, duas décadas no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e duas estratégias de sindicalismo, que, ao fim e ao cabo, conseguem encontrar pontos de convergências na defesa do serviço público na saúde. E quem os conhece reconhece-lhes esse mérito, mas quando o DN pede a ambos que definam o outro como líder nestas negociações riem-se, concordando em que "é uma pergunta difícil"..O mais antigo, Roque da Cunha, deixa claro sobre Joana Bordalo e Sá que "a sua pouca experiência sindical e negocial é superada pela sua combatividade". A mais jovem, Joana Bordalo e Sá, refere a longa experiência de Roque da Cunha, dizendo que "é um médico e um dirigente com uma larga experiência, até na política, mas para quem esta negociação também está a ser muito difícil", criticando de imediato a tutela: "Ouvia dizer que o lado político era assim, mas nunca imaginei que um processo negocial pudesse ser conduzido de forma tão atabalhoada, com reuniões adiadas ou marcadas em cima da hora e sem atas, sem o que foi discutido ficar escrito, o que considero uma falta de respeito pelos médicos." Não é a primeira vez que o diz já o fez outras vezes, normalmente à saída de mais uma ronda negocial, como aconteceu no último sábado, quando se esperava que a reunião fosse "a derradeira", e, mais uma vez, não foi: "Este processo tem sido conduzido desde o início de forma pouco séria", disse..Aos 45 anos, feitos recentemente, a 28 de setembro, e sem ainda ter completado um ano à frente da FNAM, Joana Bordalo e Sá conta ao DN que é filha de pai português e de mãe cipriota, tendo, por isso, dupla nacionalidade, confessa que sempre foi "ativista, mas nunca esteve nos meus planos de vida assumir a presidência do sindicato do Norte e muito menos a da FNAM"..O seu percurso no sindicalismo foi feito a partir da base. "Comecei como delegada sindical, em 2007, no IPO do Porto, quando ainda era médica interna na especialidade de oncologia médica". Quem a conhece diz que logo nesta altura mostrou combatividade ao encetar no IPO "a luta pelo descanso compensatório dos médicos a seguir às urgências". Uma luta que terminou com a aplicação deste regime, que, "mais tarde, em 2015, acabou por ser aceite e aplicado em todas as unidades do SNS", sublinha ela própria..O vice-presidente da FNAM, João Proença, que faz sindicalismo desde 1981, tendo participado na primeira negociação do decreto das carreiras médicas, em 1982, com o então ministro Paulo Mendo, e depois, em 1987, na renegociação deste decreto com a ministra Leonor Beleza, do Governo de Cavaco Silva, confirma que esta é a primeira vez que Joana Bordalo e Sá está a liderar uma negociação destas, mas desde o seu início no sindicalismo que se tem mostrado "uma pessoa combativa, firme e convicta na defesa dos serviços públicos de saúde e dos médicos que lá trabalham, tanto do ponto de vista laboral como salarial. É uma pessoa fantástica"..A seguir ao processo de luta no IPO foi convidada para integrar a direção do Sindicato dos Médicos do Norte, dirigido por Merlinde Madureira, médica do Hospital de Vila Nova de Gaia, que ocupava o cargo há muitos anos, quando esta decide reformar-se aconteceu o que parecia natural. "Em abril de 2022, assumi a presidência do Sindicato do Norte", confirma. Na altura, na FNAM, que integra três os sindicatos do Sul, Centro e Norte, cujos presidentes rodam na presidência da federação, estava Noel Carrilho a terminar o mandato, seguindo-se a vez do Norte, e, em dezembro de 2022, "assumi a presidência da FNAM. Ainda estive um tempo a pensar, mas acabei por assumir"..Nos seus planos de vida não faziam parte a liderança de uma estrutura sindical, mas faziam o de praticar medicina de voluntariado, que começou ainda antes de terminava o curso de Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto, quando foi em missão para o Líbano, em 2003. Logo a seguir, em 2004, depois de ter terminado o curso, foi em nova missão para a Índia, e quando já estava no internato da especialidade de oncologia médica, no IPO do Porto, foi para a Guiné-Bissau, onde esteve em 2006 e em 2010, tendo para isso que suspender o internato. "No Líbano e na Índia trabalhei mais em comunidades rurais, com mulheres e na área materno-infantil, na Guiné, no arquipélago dos Bijagós estive num hospital que se dedicava mais ao tratamento da Tuberculose, Lepra e VIH"..Em 2010, voltou ao Porto e terminou o Mestrado em Medicina e Oncologia Molecular, na Faculdade de Medicina do Porto. Em 2011, concluiu o internato no IPO e efetuou uma Fellowship da European Society of Medical Oncology (ESMO) com treino na Unidade de Fase I do Hospital de Vall d"Hebron em Barcelona. Um ano depois obteve o grau de especialista em Oncologia Médica, ficando no IPO do Porto como assistente hospitalar até 2021, no Serviço de Oncologia Médica, nas Clínicas da Mama e de Ginecologia e no Serviço de Residência, onde assume frequentemente as funções de chefe de equipa e é coordenadora do internato médico. Em 2021, recebe o grau de consultora pela Administração Central dos Serviços de Saúde..Mas o seu currículo conta também com o percurso em projetos de investigação e ensaios clínicos. "A minha formação e vida profissional nunca ficaram para trás, apesar do sindicalismo e da Ordem dos Médicos, porque também faço parte do Colégio da Especialidade de Oncologia Médica", refere..O ex-bastonário, Miguel Guimarães, conhece bem Joana Bordalo e Sá, "do tempo em que estive na Ordem. Ela fazia parte do Colégio da Especialidade de Oncologia Médica, e considero que é uma pessoa firme e corajosa, que conhece bem a saúde e defende ao máximo os direitos dos médicos"..Miguel Guimarães enaltece o facto de Joana Bordalo e Sá ser "uma das mais jovens dirigentes da FNAM, senão mesmo a mais nova, que assumiu a liderança numa altura muito crítica e em que está muita coisa em jogo para os médicos. E acho que está fazer bem o seu papel"..A médica confessa que este primeiro ano na liderança lhe tem tomado muito tempo, "muito trabalho que se vai acumulando no meu serviço e que tem de ser feito", por isso diz-se desgastada, acreditando mesmo que, "talvez, esta tenha sido uma das táticas do Ministério da Saúde, desgastar os médicos, porque, infelizmente, olho cada vez mais para esta negociação com muita preocupação", desabafa. "Se houvesse vontade política para um acordo com os médicos a tutela já o teria demonstrado. Eu e a minha equipa, porque somos uma equipa de médicos do Norte, do Centro e do Sul, estamos nesta negociação porque queremos chegar a um acordo, mas achamos que o acordo está cada vez mais longe". Assume que este "discurso parece uma cassete repetida, mas cada vez que nos enviam o que dizem ser uma nova proposta esta é igual à anterior ou pior", sublinha.Antes da demissão do primeiro-ministro, anunciada ao início da tarde de ontem, o ministro da Saúde dizia "estar disponível para um aumento de 8,5%, mas aqui estão incluídos os 3% do aumento para a função pública, mas isto dá um aumento de 75 cêntimos em termos líquidos para a maioria dos médicos, o que é inaceitável". O risco que se corre, sem um acordo, "é a aceleração da saída de médicos do SNS"..Ao contrário de Joana Bordalo e Sá, que é uma cara nova para a opinião pública, Jorge Paulo Roque da Cunha tem um longo currículo na saúde, na política e na vida sindical. Aos 63 anos, continua a exercer Medicina Geral e Familiar no Centro de Saúde de Camarate para onde concorreu há 14 anos. Nascido em Luanda, veio para Portugal aos 15 anos e o ser médico sempre foi a opção para o seu destino. "O meu pai era médico e o ser médico fez sempre parte da minha vida", confessa. Ingressou na Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa em 1978, onde terminou o curso em 1984 e onde se iniciou no associativismo, como presidente da Associação de Estudantes de 1982 a 1984..Logo a seguir ao curso iniciou o internato da especialidade, mas também a sua vida sindical. "Um mês depois de ter acabado o curso fui falar com o Dr. António Bento que era o secretário-geral do SIM, numa altura em que a sede do sindicato funcionava praticamente na casa dele. E propus-lhe que se iniciasse um percurso mais institucional, o que nos levou a partilhar a sede durante uns anos num espaço onde estavam também a Federação dos Quadros Técnicos do Estado, o Sindicato dos Economistas, que na altura tinha como presidente um sr. chamado Fernando Nogueira"..Mas a atividade sindical não o fez colocar de lado a vida política. Em 1987 era vice-presidente da JSD e chegou a deputado da República pelo círculo de Lisboa. Nesta altura, conta ao DN, "dei uma entrevista ao jornal O Século, que teve honras de primeiro página, a criticar as mudanças que Leonor Beleza e Costa Freire queriam integrar nas carreiras médicas. Foi a partir daqui que o professor Cavaco Silva me conheceu"..Entre 1987 e 1999 cumpriu três mandatos no Parlamento. Neste período, presidiu à Comissão Parlamentar da Saúde, onde considera que fez "um trabalho interessante", mas "foram 12 anos dedicados só à vida política e sem qualquer prática médica ou intervenção na vida sindical. Quando saí, retomei a minha vaga no internato da especialidade, que tinha ficado suspensa, no centro de saúde de Alvalade e quando terminei, concorri à uma vaga no centro de saúde de Camarate, onde ainda continuo"..O regresso à vida sindical ocorre dois anos depois de ter saído da política, quando "o Dr. António Bento me convida para integrar o secretariado-geral do SIM", conta. E desde então que tem participado nas negociações com a tutela. A primeira foi em 2012, com o ministro Paulo Macedo.."Foi uma altura conturbada em que o SIM teve de decretar uma greve, que acabou por ter muita participação. Depois, a partir daqui, participei na assinatura dos acordos entre médicos e os vários governos da República, com os governos das Regiões Autónomas, com as três Parcerias Público Privadas (PPP), em acordos com a Santa Casa de Lisboa, com o Ministério da Defesa, para os médicos militares, e com o Instituto de Medicina Legal. Tudo isto em conjunto com os nossos colegas da FNAM", assumindo que "somos duas estruturas diferentes, o SIM é totalmente independente das outras estruturas sindicais e centrais sindicais, mas há uma coisa que nos une, que é, fundamentalmente, a defesa do SNS"..Apesar de estar habituado à exposição, Jorge Roque da Cunha confessa não gostar falar de si, mas quem o conhece reconhece-lhe o papel que tem desenvolvido à frente do SIM.."Sou amigo dele há alguns anos e apesar de se ter formado em Lisboa é um adepto convicto do FC Porto", afirma o ex-bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, sublinhando que "é uma pessoa com ampla experiência política e no que é um processo de negociação. É um homem combativo e sensato, se esta negociação não está a ser fácil para ninguém é porque temos um Governo que ainda não percebeu o que faz falta ao SNS". .Roque da Cunha e Joana Bordalo e Sá assumem que os médicos estão mais desmotivados com esta longa negociação. Ambos já levavam expectativas baixas para a reunião de hoje com o ministro e com a crise política que se instalou ainda mais. "Vamos ver", dizem..As últimas reuniões com o Ministério da Saúde foram sempre consideradas como "a reunião derradeira", mas destas não saiu fumo branco, e o mesmo se antevia para o encontro de hoje, que foi cancelado, tanto mais porque iria decorrer em ambiente de crise política à espera de uma decisão do Presidente da República sobre o futuro do país. A questão agora, é o que vai acontecer ao que andou a ser negociado durante tempo?.Mas em cima da mesa continua por discutir a valorização salarial dos médicos. Em relação aos outros dois temas, que os sindicatos apresentaram numa proposta conjunta ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a reposição de um horário semanal de 35 horas para os médicos que o quisessem e a reposição das 12 horas de Urgência, em vez das 18 horas, ao fim de muitas horas de negociação foram encontrados pontos de convergência em que tanto ministério como sindicatos acabaram por ceder..Quanto ao último ponto, os sindicatos reivindicam aumentos de 30% para todos os médicos e não só para os que aceitem o regime de dedicação plena ou que trabalhem em Unidades de Saúde Familiar, defendem aumentos iguais para todos, já que a maioria dos médicos trabalha em regime de 40 e de 42 horas..Mas a tutela apresentou um aumento da ordem dos 5%, na última reunião falou em 8,5%, mas este valor já integra o aumento destinado à Função Pública, o que para as estruturas sindicais é inaceitável, sobretudo porque são "dos médicos mais mal pagos da UE" e porque "há duas classes que no país perderam poder de compra, que são os médicos e os investigadores", lembra Miguel Guimarães..Nos últimos tempos, os apelos para se chegar a um acordo têm vindo de todo os lados, até do próprio diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, bem como de ex-secretários de Estado - Lacerda Sales, disse nesta segunda-feira à RR que não pode ser só o ministro da Saúde a dar tudo na negociação com os médicos. O Governo tem de se envolver, até porque muito depende dos ministros das Finanças e da Administração Pública..O que irá acontecer não se sabe e os sindicatos vão esperar pela decisão do Presidente da República.