Da distância social à política
Não quero iniciar este diálogo regular com o leitor sem ter como primeiro tema a pandemia. É verdade que é um assunto batido, com muita gente a refletir sobre o que poderá ser o mundo, uma vez vencido o vírus. Uma boa parte dessas reflexões inspira-se no princípio da bola de cristal, uma técnica que foi aperfeiçoada, ao longo do tempo, por todo o tipo de adivinhos. Outros pensadores veem no desenrolar da pandemia a confirmação das suas obsessões ideológicas. Aproveitam para atacar à esquerda e à direita. Confirmam a morte do neoliberalismo ou da globalização, mesmo do capitalismo, aquecem ao apontar as causas climáticas, saúdam antecipadamente o fim da hegemonia americana ou a falência do projeto europeu e assim por diante. Para muitos desses intelectuais, futurismo parece rimar com irrealismo e irrequietismo.
É, na verdade, fundamental saber-se olhar para o futuro. Temos consciência de que as grandes transformações vieram de quem conseguiu ver para além do horizonte. Cem anos após a mal denominada "gripe espanhola", a pandemia do coronavírus é o maior choque que se sofre depois da Segunda Guerra Mundial. É como um tsunami global. O mundo está a trabalhar em câmara lenta ou mesmo parado, nalguns casos. O que era até março uma aldeia global transformou-se num arquipélago de ilhas isoladas. As pontes levadiças estão todas levantadas, com medo do contágio que possa vir do vizinho. Vivemos um tempo de ansiedades e de medos. Todavia, apesar das incertezas, não fica descabido prever-se que a ordem mundial de amanhã seja bem diferente da que fomos construindo até ao início deste ano. Sem entrar no jogo da bola de cristal, prevejo que as questões da pobreza em massa, como existe em certas partes do globo, das desigualdades sociais, nas sociedades mais desenvolvidas, da deterioração do meio ambiente e da competição entre as superpotências marquem de modo predominante a agenda do futuro.
Cada uma dessas questões traz consigo uma teia de outras interrogações, que mostram a complexidade do que temos pela frente. Por outro lado, é preciso vencer a indiferença social que, entretanto, se apoderou das pessoas. Cada um preocupa-se apenas com o tratar de si. Fecha-se na sua concha de alheamento perante as dificuldades dos outros. Muitos líderes políticos tiram depois a conclusão de que o importante é o que se passa no espaço doméstico, como se fosse possível parar os problemas à porta da nação, com o baixar de uma cancela fronteiriça. Daí até à crise do sistema multilateral é um passo de anão, tanto mais facilitado quanto mais tímidos, apagados ou confusos se mostrarem os que estão à cabeça das instituições internacionais.
A competição entre as superpotências preocupa-me sobremaneira. Vejo os Estados Unidos e a China a percorrer uma rota perigosa. A pandemia veio acelerar o conflito, em particular do lado americano. Novas tensões e acusações permanentes contra o adversário podem levar a um passo em falso, que teria gravíssimas consequências para todos nós. Entretanto, ambos os lados procuram aumentar o número dos seus apoiantes na arena internacional. Aliados não é a palavra exata. O que cada um deles pretende é criar um círculo de Estados vassalos, que sigam a linha política definida em Washington ou Pequim e limitem o acesso dado ao outro lado. É esta a tendência crescente do relacionamento americano com a Europa. Estão a ter êxito com Boris Johnson, que acaba de dar uma cambalhota política no que respeita à Huawei. E continuam a fazer pressão junto de outros governos europeus, no mesmo sentido e em várias outras matérias, igualmente. A única resposta estratégica é, porém, a de manter uma certa distância entre as duas partes antagónicas, reforçando a soberania europeia. A pandemia ensinou-nos a expressão "distância social". A Europa precisa agora de aprender a prática da "distância política".