A miúda chega com o lado esquerdo da cara inchado, quase escondendo o olho. Corpo franzino, frágil, e a barriga anormalmente redonda, subnutrida. Não tem mais de quatro anos. Não lhe ouvimos um gemido, uma queixa; não diz nada. Encolhe-se muito, agarra-se à saia da avó que a trouxe e que está desesperada porque a pequena "está assim há dois dias". "Não consegue mastigar", diz em tom choroso. Está com um abcesso, grande, que lhe incha a face como se tivesse papeira. Como não há médicos onde mora, veio para ser atendida no navio-hospital da ONG brasileira Saúde e Alegria, o Abaré, que agora está ancorado perto da comunidade ribeirinha de Mirixituba, no rio Tapajós (médio Amazonas). .Começa a chegar mais gente de várias comunidades ribeirinhas. Chegam em pequenos barcos, comandados pelos marinheiros do navio. Vêm sobretudo mulheres, idosos e crianças. A sala de espera está lotada. A palhaça Macaxeira vai distraindo os mais novos. Chamam-se os pacientes: são vistos, medicados e, em casos mais graves, levados para Santarém de ambulancha, "a cidade mais próxima com melhores condições", assegura Marcela Pinheiro, enfermeira-chefe do Abaré. .Uma vez por mês é assim, nas margens do Rio Tapajós, revezando entre a margem esquerda e a direita, numa parceria entre a Secretaria Municipal de Saúde de Santarém, que cede profissionais, e a ONG Saúde e Alegria, que assegura técnicos, palhaços, meios e logística, para percorrer em dez dias mais de 15 comunidades ribeirinhas. É a única forma, por aqui, das populações isoladas, rurais, saberem como vão de saúde. Há muitos ribeirinhos que nunca viram um médico, ou tomaram sequer algum remédio. Santarém pode ficar até um dia de viagem de barco, quando os há. E, depois, há muita água, a única via de acesso, a separar as comunidades da cidade, "onde está a saúde". Se o caso for grave, a ONG assegura, por contacto via rádio, a ambulancha, caso o navio Abaré (em tupi significa "amigo") e é altamente equipado - farmácia, laboratório, sala de operações -, não ande por perto. As populações já lhe conhecem o barulho, quando chega. Marcam consulta com a base em Santarém e guardam o calendário com as próximas datas. .A miúda do abcesso já entrou para o dentista. Vai ser levada ao fim do dia para Santarém. Desprendeu-se da saia da avó, agora, mais aliviada. Enquanto espera, na sala de descanso, senta-se ao lado de um miúdo que está deitado na maca, com soro, desidratado, depois de alguns dias de diarreia. "Esse é o problema mais comum nas crianças destas comunidades, onde a água potável, apesar do imenso rio, é um bem escasso, quando não há hipoclorito para a desinfectar", diz Marcela. Mal acaba de falar, a ginecologista Dalila Lima abre a porta da sala e diz, em tom imperativo: "Manda chamar o barco. Vamos fazer um parto a Suruacá." Horas depois voltaria vermelha que nem um pimento, queimada, das duas horas de viagem de voadeira - pequena embarcação de alumínio com motor - sob um sol intenso pelo rio Tapajós. Chegou ofegante e cansada. "Não dava tempo de a trazermos para o navio. Mas quando lá cheguei a parteira [tradição mantida nas comunidades, porque não há hospitais] já tinha feito o trabalho. É um garoto de três quilos, saudável.".A equipa de mais de vinte profissionais entre técnicos, médicos, enfermeiros, farmacêutica, cozinheiros, palhaços, marinheiros e técnicos de laboratório já está habituada aos improvisos, aos mosquitos, ao calor, ao cansaço e às urgências. "Também operamos, de vez em quando", diz Dalila. "É uma aventura que nos dá a sensação de missão cumprida."