Corruptos somos todos...

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A corrupção desfruta do deveras invulgar estatuto social de, abstraindo humoristas em crise de imaginação, não ser elogiada por ninguém... É, seguramente, dos mais alargados consensos contemporâneos...

Claro que tal ausência implica expeditas generalizações da condenação, mas, como sempre acontece nestas universais unanimidades, aconselha a prudência a que se verifique com cuidado se isto de todos dizerem a mesma coisa significa que efectivamente todos estão de facto a dizer, e sobretudo a pensar, a mesma coisa.

O discurso de Cavaco Silva no 5 de Outu-bro lançou evidentemente o tema, não se podendo de resto negar sentido de oportunidade à intervenção: ainda estão frescas as assinaturas PS/PSD no "pacto da justiça" abençoado por Belém, foi nomeado o novo procurador, o que constituiu oportunidade para novas dissertações.

Incluído embora de forma mais discreta na intervenção de 5 de Outubro (na qual avulta uma muito sugestiva referência ao centenário de 1910 a que ninguém parece ter querido dar importância...), há um tom que ocupa crescente espaço nesta nova preocupação nacional e que foi logo dado no passado domingo por Marcelo Rebelo de Sousa: a teoria, em linhas muito gerais, é que o problema é, de facto, nacional por- que isto está-nos na massa do sangue... Corruptos somos todos, uns com a moedinha ao arrumador, outra com a nota ao contínuo - outra com os milhões no offshore... Lá no fundo, no fundo, é tudo a mesma coisa, o mal somos mesmo nós, somos assim...

Mas logo a seguir vem o que torna este discurso sorridentemente cúmplice tão significativo quanto perigoso e reaccionário: por um lado, o problema é de mentalidades e, como somos todos igualmente corruptos, é preciso mudar todas as mentalidades. Claro que a corrupção do offshore é complexa (requer "meios", "tempo", "especialistas", etc.), mas a restante, a desta corrupçãozinha de que todos, povinho, somos culpados, isto a cassetete e rédea curta vai lá...

Um discurso de contornos falsamente moralizantes sobre a corrupção é sempre um manto sobre as suas causas reais e a verdadeira realidade da sua dimensão, significado, métodos, protagonistas. E, jogando num sentimento de condenação justamente sentido pela população, constitui uma cobertura ideal para derivas autoritárias.

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