Foi uma decisão de última hora. Há sempre alguma coisa a acontecer em Los Angeles, e esta era uma noite de jazz num restaurante-bar em Encino, no vale de San Fernando, a norte de Hollywood. O meu amigo português tinha alugado um Mustang descapotável, mas decidimos estacionar na rua para não pagar as exorbitâncias do valet. Na rampa da entrada para o restaurante, um homem vestido de branco - cozinheiro, pensámos - olhou para nós de soslaio. "Têm reserva?" Não, claro que não tínhamos, foi uma decisão de última hora. Ele franziu o sobrolho. "O quê, vão entrar assim à desportiva?" O meu amigo estava de calções e ténis. Só queríamos sentar-nos ao bar para beber um Ginger Ale. O cozinheiro deu meia volta e disse para o seguirmos. "Venham, vou dizer que estão comigo." Fez sinal ao homem impecavelmente vestido que estava a receber as pessoas e conduziu-nos ao bar, tentando arranjar dois lugares juntos. Não havia. Olhámos em volta e percebemos porque é que era preciso reserva. O Lakeside Café fica ao pé de um lago, com patos e água límpida, verde a perder de vista, um pátio gigante cheio de plantas excêntricas. Um copo de vinho custava 30 dólares. O cozinheiro teve um assomo de rebeldia e levou-nos para uma das mesas que estavam reservadas para jantares. Assim, sem mais nem porquê. Não queríamos jantar, queríamos uma bebida fresca para contrariar os 38º que ainda se faziam sentir àquela hora, e pedimos dois mojitos - que não estavam na carta de bebidas. O jazz começou a ecoar no pátio, dois músicos vestidos a rigor tocando All of Me. "Falem comigo. Peçam tudo a mim", disse o cozinheiro, com ar cúmplice. "O meu nome é Hugo." Desfizemo-nos em agradecimentos, admirando a paisagem espetacular e o sossego deste lugar desconhecido. Quando o Hugo retornou, sugerindo que comêssemos calamares, não tive coragem de dizer que sou vegan, e lá vieram aquelas lulas fritas.."Isto é por minha conta", anunciou ele. Virou costas antes que pudéssemos protestar, seguindo como um ninja de volta para a cozinha. "Ele deve ser o dono disto", sugeriu o meu amigo, passando uma lula por molho cocktail. Porque é que alguém infiltraria duas pessoas claramente mal vestidas para um local onde só se entra por reserva e ofereceria comida por conta da casa? Tornámos a olhar em volta. A clientela era mais velha do que se vê em Hollywood. Talvez mais endinheirada. E completamente caucasiana. Em Los Angeles há uma fusão tão grande de nacionalidades, raças e origens que é raro ir a algum lado sem encontrar maior diversidade, mas Encino tem uma percentagem de população caucasiana mais elevada do que as restantes cidades do condado. Nós éramos a diversidade. Dizem que a nossa pele mediterrânea é cor de azeitona, tão diferente da palidez dos "verdadeiros americanos", como já ouvi muitas vezes chamar os descendentes dos europeus que vieram do frio. Nós viemos do Sul da Europa, e não é preciso abrir a boca para que saibam que não somos do Norte. Hugo soube-o no momento em que olhou para nós à porta do restaurante. Quando regressou para perguntar como estava a comida, ouviu-nos falar português. Percebeu uma palavra e lançou, esperançado: "Hablan español?" "Pues sí, como no!", respondi. O sorriso rasgou-se, tocou-nos nos ombros como velhos amigos, dizendo que veio da Nicarágua há 22 anos. Puxou dois cartões do bolso: é o chef executivo do restaurante. Disse-nos para lhe ligarmos sempre que quiséssemos lá ir, tínhamos ali um amigo. Anuímos e retribuímos o convite - há de ir um dia a Portugal, provar o peixe que se cozinha como em nenhum lugar, conhecer as nossas gentes afáveis com peles brancas, negras ou cor de azeitona, e há de ser por nossa conta. Há de saber que ali se fazem amigos instantâneos em tardes regadas a sangria, e que o pão é o melhor do mundo..Já não tivemos tempo para o segundo mojito, porque a eletricidade foi abaixo e só as velas nas mesas impediam a escuridão total. Foi um apagão generalizado, talvez por um pico de consumo de sistemas de refrigeração por causa da onda de calor que aflige Los Angeles por estes dias. Os músicos cantaram sem microfone nem colunas, improvisando às escuras. Quando quisemos pagar os mojitos, não havia sequer registo do consumo na mesa. Hugo quis oferecê-los, e, quando cedeu às insistências, pediu apenas dez dólares por cada um. Isso é o preço de uma cerveja. "Que te lo pases bien", atirei--lhe em despedida. Acenou, de uma forma genuína, diferente da simpatia envernizada dos americanos, muito mais comum por estas bandas. Antes que o verão acabe, havemos de voltar.