"Sem Congresso, sem debate com a sociedade, sem consulta a estados e municípios, sem perguntar aos pais, o Governo Lula impõe casas de banho unissexo para todas as escolas públicas", escreveu Sergio Moro, dia 24 de setembro, nas redes sociais. O senador do União Brasil recuperou uma notícia falsa da campanha eleitoral de 2022 para desviar o foco da economia, fonte de notícias razoavelmente boas para o governo, e direcioná-lo para a agenda dos costumes. O objetivo é contra-atacar Lula em temas sensíveis, capazes de reagrupar uma oposição combalida com os casos de polícia em torno de Jair Bolsonaro..A ofensiva conservadora teve como pretexto votações no maioritariamente progressista Supremo Tribunal Federal (STF) a favor da liberalização do porte de drogas leves e da descriminalização do aborto até à 12.ª semana de gestação mas visa ganhos eleitorais em 2024, ano de eleições municipais, e 2026, ano de eleições gerais, presidencial e legislativa..Numa réplica do ambiente vivido na campanha eleitoral do ano passado, a deputada Priscila Costa, do PL, de Bolsonaro, usou, dia 26 de setembro, a miniatura de um feto como símbolo antiaborto numa conferência de imprensa a que compareceu a nata do bolsonarismo..E Osmar Terra, do MDB, ex-ministro de Bolsonaro que garantiu que a covid-19 mataria menos do que a gripe sazonal no estado do Rio Grande do Sul, publicou que "a legalização da maconha dita medicinal" é um "cavalo de Tróia para favorecer a liberalização da maconha recreativa" e, depois, "todas as drogas"..Na onda, o deputado Pastor Eurico, do PL, num momento quase tão delirante como o de Moro e a sua cruzada quixotesca contra casos de banho unissexo, lançou cartazes com a frase "não tem sentido homem casar com homem e mulher casar com mulher, aprendam e respeitem a família", visando uma decisão do STF sacramentada no longínquo ano de 2011..Em paralelo, há reação do lóbi dos grandes latifundiários à votação no STF que favorece indígenas na demarcação de terras..Para Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro, "a academia tem observado um esforço deliberado do governo Lula em dar prioridade a temas económicos e a secundarizar a agenda dos direitos civis, como o direito ao aborto, a descriminalização das drogas e outros, porque os primeiros, os temas económicos, merecem o apoio até dos segmentos mais conservadores, enquanto os segundos aprofundam uma polarização ideológica que o executivo pretende desativar".."Esse debate ideológico, entretanto, é muito útil para as lideranças de direita que precisam dele para arregimentar as bases eleitorais: com a decadência do bolsonarismo, essas lideranças estão um pouco sem saber o que fazer e dessa forma trabalham para manter a coesão das suas bases eleitorais através da reanimação dessas contendas", sublinha..A extrema-direita brasileira vai além da retórica: Rogério Marinho, do PL, líder parlamentar do bloco de oposição no Senado Federal, conseguiu reunir as assinaturas necessárias para iniciar o processo de realização de um plebiscito nacional sobre o aborto..E a Frente Parlamentar contra o Aborto e em Defesa da Vida do Congresso Nacional entrou com uma providência cautelar para impedir a votação no STF da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até 12 semanas..Nomes destacados do bolsonarismo, como a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, o campeão de votos Nikolas Ferreira e as radicais Carla Zambelli e Bia Kicis, empenharam-se na campanha para a eleição, no domingo, dia 1, dos Conselhos Tutelares, órgãos municipais que "zelam pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente". Segundo o jornal O Globo, em São Paulo e no Rio de Janeiro foram eleitos mais conselheiros de viés conservador do que progressista..No próximo fim de semana a direita promove a Marcha da Família, uma evocação da Marcha da Família com Deus e a Liberdade de 1964 que precipitou o golpe militar daquele ano..Finalmente, no campo de batalha evangélico, onde Lula vinha conseguindo paulatinamente penetrar segundo sondagem da Genial-Quaest de agosto, os parlamentares Marco Feliciano e Magno Malta, ambos do PL, tentam colar no presidente da República a sanha pró-aborto, pró-drogas e, por que não, pró-casas de banho unissexo e outras notícias falsas.."Lula cresceu entre evangélicos, sobretudo entre mulheres da periferia das grandes cidades, que trabalham, que lidam com orçamento do dia a dia, como essas mulheres, por um lado, são sensíveis à melhoria na economia mas, por outro, são cristãs e antiaborto, a direita avança, a meu ver bem, sobre elas, enfatizando a guerra cultural", sublinha Vinícius Vieira, politólogo da Fundação Armando Álvares Penteado.."A estratégia da direita e da extrema-direita de fustigar o governo Lula com a guerra cultural não é nova nem no Brasil - ainda quando Dilma Rousseff ia bem na economia essa agenda surgiu, depois, quando ela passou a não entregar crescimento económico, acabou por ser derrubada em impeachment -, nem no estrangeiro - nos EUA, em 1994, com a vitória dos Republicanos no Congresso, Bill Clinton passou a enfrentar, mesmo com amplo crescimento económico, oposição aguerrida liderada à época pelo deputado republicano Newt Gingrich".."Lula não está, pois, sozinho ao enfrentar a guerra cultural numa situação de, para já, ainda pequeno crescimento económico mas com previsão de estabilidade nas contas públicas, na retomada do crescimento e, sobretudo, na entrega de dinheiro nas mãos da população através de salário e consumo", continua o académico.."Sem a economia, portanto, sobram à direita para as eleições municipais de 2024 questões como direitos LGBT, direitos da mulher, terras indígenas e drogas"..dnot@dn.pt