Com saudades de um pai que mal conheci

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Avidente começou a rir."O que foi?", perguntei. "Depois da morte do seu pai", disse ela, "você vai descobrir uma coisa sobre ele. Uma coisa hilariante."

"Uau. O quê?"

"Eles não dizem. Mas, aparentemente, é muito engraçado. É uma coisa que tem vindo a acontecer já há uns tempos."

"Está a acontecer agora?"

"Decididamente."

Isto é muito frustrante, pensei. "É uma coisa... sexual?", perguntei.

"Eu penso que sim. Mas não tem de ser."

Examinei várias possibilidades para tentar descobrir o que poderia ser. Nenhuma parecia coisa dele.

"Certamente que você já deve ter sentido que está a acontecer essa coisa surpreendente na vida dele, completamente louca e hilariante, sobre a qual você nada sabe?", perguntou ela.

Pensei por um momento e respondi: "Não."

"Bom, seja o que for, quando você descobrir, vai-se rir."

Esta conversa aconteceu há nove anos. A minha mulher estava a escrever um episódio-piloto de uma série de televisão baseada num livro sobre uma vidente famosa. Estávamos a jantar com a vidente e ela fez uma sessão improvisada comigo para que a Kate pudesse vê-la em ação.

Refiro isto para salientar que a previsão veio de alguém que muitas pessoas consideram ser uma fonte muito fidedigna.

Quando o meu pai, Jerry, estava a morrer há pouco mais de dois anos comecei a pensar no pouco que eu sabia sobre ele. O que não quer dizer que não tivesse passado tempo com ele.

Vivi com ele e com a minha mãe em Maplewood, New Jersey, até ter ido para a faculdade. Falava com ele ao telefone todas as semanas quando, logo depois de ter saído da faculdade, me mudei para Los Angeles. Voltava a casa com frequência para os visitar e, depois de a minha mãe ter morrido, para o visitar a ele.

Nos últimos cinco anos trabalhei num programa de televisão gravado em Nova Iorque e via-o sempre na primavera e no verão.

Mas confesso que quase nunca falámos sobre fosse o que fosse. Nada. Zero.

Uma vez, depois de um dos nossos telefonemas terrivelmente enfadonhos, corri para a mesa onde desenho caricaturas e rapidamente fiz uma de um homem ao telefone que dizia: "Não estou a tentar dizer nada - estou só a falar."

Na semana em que esse cartoon apareceu na revista The New Yorker falei com o meu pai e ele riu-se e disse: "O teu cartoon desta semana era muito engraçado."

Fiquei espantado. Primeiro, ele não comenta muitas vezes os meus desenhos. Mas, mais estranho ainda, aquele era sobre ele, o que me levou a questionar: ele saberá que é sobre ele? E, se sabe, não deveria ficar aborrecido? E se ele está aborrecido, eu não deveria ficar triste? Mas como ele não parece chateado, não deve perceber que é sobre ele. Então deve pensar que é sobre outras pessoas. Mas ele não pode pensar isso, porque as outras pessoas dizem realmente coisas e ele não.

OK, nós falávamos sobre alguma coisa. Mas nunca nada era realmente dito. Basicamente falávamos sobre parentes, filmes que ele tinha visto ou livros que tinha lido. Mas a conversa tinha de se manter a um determinado nível, senão ele ficava frustrado ou em silêncio.

Uma vez, quando ele me ligou e perguntou se havia novidades e eu lhe disse que a minha mulher tinha tido o seu terceiro aborto em dois anos, ele simplesmente desligou o telefone.

Quando eu era criança havia outro Jerry Kaplan em Maplewood. Às vezes recebíamos o correio dele. Nós não o conhecíamos realmente, mas havia algo de estranho no facto de existir esse outro Jerry Kaplan andando pela cidade, apanhando também o comboio para e de Manhattan todos os dias.

Pergunto-me agora se a razão de ser tão estranho não seria porque havia outro Jerry Kaplan a morar na nossa casa. O outro Jerry Kaplan estava dentro do nosso Jerry Kaplan.

O meu pai começava muitas vezes a dizer alguma coisa e depois dizia "Esquece". Acontecia quando ele ia ser verdadeiro e dizer o que estava realmente a pensar. Então não o fazia. Era quase como se ficasse em perigo se o fizesse.

Agora quando alguém começa a dizer alguma coisa e depois diz "Esquece", eu fico exageradamente irritado. "Começar a dizer uma coisa e depois dizer "Esquece" é a pior coisa que se pode fazer a uma pessoa", digo eu sempre que isso acontece.

O que, na verdade, não acredito que seja. Mas digo-o.

Suponho que o meu pai aprendeu cedo que não há nada mais perigoso do que mostrar o seu verdadeiro eu. Acho que muitos de nós aprendemos isso e realmente pode ser verdade. Mas muitos de nós tentam desaprender isso. Ele não o fez.

Assim, tudo o que realmente posso dizer sobre o meu pai é que ele fazia coisas estranhas, como pôr folha de alumínio numa garrafa de cerveja depois de beber alguns goles, para, em seguida, voltar a colocá-la no frigorífico talvez para a acabar noutra noite.

Nem sequer sei se ele realmente bebia a cerveja nos dias seguintes em que ela ficava no frigorífico com a folha de alumínio por cima.

Ele adorava cantar "Oh you can"t fool me, I"m sticking to the union".

Tanto quanto sei, ele leu todos os livros escritos por Susan Isaacs, Rona Jaffe, Avery Corman e Evan Hunter.

Ele conseguia ser bem-intencionado. Os nossos presentes de anos sempre foram comprados pela minha mãe. No primeiro ano depois de ela ter morrido, ele esforçou-se bastante para me dar um presente que achava que eu gostaria. Mandou-me Manhattan, When I Was Young, de Mary Cantwell.

Quando liguei para lhe agradecer, ele estava muito orgulhoso de si mesmo.

"Dei-te ou não o género de livro de que tu gostas?", perguntou.

"Sim."

"Tive de procurar muito, mas quando o vi soube logo que era aquele que tinha de comprar."

"Fez um ótimo trabalho", disse-lhe.

Eu não mencionei que já o tinha lido. Na verdade, tinha dado o meu exemplar à minha mãe e a ele... e o livro estava em casa dele.

Quando eu era pequeno, ele costumava comprar-me uma tarte de pudim de chocolate em miniatura na padaria das velhas senhoras alemãs na Avenida Springfield. E, quando eu já era mais velho, continuava a comprá-las para mim quando eu ia lá a casa visitá-lo. Aquelas tartes pareciam pequenas obras de arte com as raspas de chocolate sobre o chantilly.

E o meu pai tinha certas coisas que adorava, como os filmes que passavam na televisão, todos os filmes que passavam na televisão, qualquer filme que passasse na televisão. Podia ser sobre uma mulher em perigo, como acontecia com muitas das mulheres que neles entravam. Ou uma família em perigo, o meu género favorito.

Sempre que uma família ia de férias, um gangue de motociclistas iria torturá-los sem motivo, o que era extremamente injusto.

Ou poderia ser uma comédia sobre duas mulheres que trocavam de vidas. Ou um filme melodramático em que alguém, como por exemplo uma Susan Dey adolescente, é injustamente posta numa prisão de mulheres. Ou uma leve comédia romântica sobre uma mulher que perde muito peso e ganha uma nova vida, interpretada por Patty Duke. Patty Duke entrava em muitos deles, a seguir Patty Duke Astin entrou numa quantidade deles, depois Patty Duke novamente.

A maior parte das noites (porque eles passavam domingo, segunda, terça, quarta e sexta-feira), a minha mãe perguntava qual era o filme na TV.

"Terror Noturno", poderia ser a resposta do meu pai. Como se pode imaginar pelo título, este era sobre uma mulher em perigo. Valerie Harper atravessa o país de carro sozinha e, como acontecia muitas vezes com estas mulheres, um desconhecido de repente começa a torturá-la, até que, acho, ela é forçada a matá-lo em legítima defesa. Elas eram quase sempre forçadas a matar o homem em legítima defesa.

"Sobre que é o filme?", perguntava a minha mãe.

"É baseado numa história de Sartre", respondia o meu pai, independentemente do tema do filme.

A primeira vez, ela acreditou. Depois, aquilo tornou-se uma brincadeira entre eles. Na nossa brincadeira, acho eu. Porque, quando penso nisso agora, sorrio.

Assim, depois de o meu pai morrer, fiquei à espera do que a vidente disse que iria acontecer. Um grande e hilariante segredo seria revelado.

Para ser honesto, não acreditava realmente nisso. Mas tinha esperança. Eu queria descobrir o que realmente se passava naquela enorme cabeça careca. Era a minha última oportunidade, na verdade.

Mas como podem ter suspeitado, não descobri coisa alguma. Nada de interessante ou de privado foi revelado. E ainda não foi. E acho que nunca vai ser. Assim, nunca irei dar aquela gargalhada que a vidente disse que eu daria.

E nunca conhecerei realmente o meu pai, está decidido. É uma coisa estranha e triste perder alguém que nunca se conheceu.

Por outro lado, ele deu-me tantas coisas de que me lembro, as coisas boas que ele fazia, como comprar-me minitartes de pudim de chocolate, e as coisas estranhas, como a folha de alumínio sobre a garrafa de cerveja e a ideia de que, por muito banais que sejam, todas as histórias são baseadas numa história de Sartre. Provavelmente até esta.

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