Colados à treta

Publicado a
Atualizado a

Dois membros da Just Stop Oil (JSO) arremessaram sopa enlatada no quadro Girassóis, de Van Gogh, na National Gallery. Depois, colaram as mãos à parede enquanto gritavam: "O que vale mais: arte ou vida? Vale mais que comida? Vale mais que justiça?", acrescentando: "Você está mais preocupado com a protecção de uma pintura ou com a protecção do nosso planeta e das pessoas?"

Certo é que nem se sabe o que levou essas jovens a escolher o atormentado génio holandês, nem se também se preocupam com os produtos usados para colorir o cabelo de rosa, para fabricar o pega-tudo ou a tomatada em lata. Garantido é que se trata de elementos radicais da agenda ambientalista, gretas do alarmismo global, cravejadas de certezas, contradições e, sobretudo, instrumentalizadas em nome de uma suposta verdade absoluta que, nas suas cabeças definitivas, justifica toda a urgência e extremismo, a aniquilação de direitos. No limite, o fim da própria democracia. Acham-se superiores ao mortal, um povo eleito que enfrenta o plebeu ignaro e sujo, missionários de uma causa nobre educando o primitivo e mau, com uma soberba que se estica até ao vandalismo e à destruição da Beleza. Ao seu lado caminham os terroristas animalistas. Atacam agricultores e cientistas, arrasam laboratórios, incendeiam propriedades.

Em julho, o JSO protestou contra licenças de petróleo e gás colando as mãos numa réplica da A Última Ceia, de Da Vinci. Nessa altura, na National Gallery, também atacaram uma tela de John Constable. Uns dias antes, os congénere Extinction Rebellion colaram-se a um Picasso em Melbourne.

Há quem diga que o seu último protesto seria mais válido se cortassem uma orelha. Outros entendem que o melhor era terem queimado os popós eléctricos dos papás que lhes pagarão advogados. Há quem fale em as deixar uns dias grudadas à parede enquanto o líquido vermelho seca no vidro que protegia o óleo novecentista. Transformar-se-iam numa impressiva instalação artística. A lata de sopa nem precisava de ser a do Andy Warhol. Adiante. Percebe-se a indignação. A arte é Património Cultural da Humanidade. Quem atenta contra Van Gogh, atenta contra todos, sobretudo os que só assim podem ter acesso ao melhor do Homo Sapiens. Também se entende a repulsa, porque estes golpes dirigem-se sempre ao mexilhão. Repare-se: será que escolheram atacar estas peças porque são alvos fáceis e só posteriormente construíram os tais gritos de ordem bacocos sobre o valor da arte? Afinal, ir contra um banco ou alguma coisa da meia dúzia de famílias ou grupos que realmente mandam no mundo e o controlam é muito mais inacessível e muito mais perigoso. Já um quadro enfim, está ali sentado, parado como a nêspera do Leiria, disponível para todos, de todos. A arte é que é o problema?! Ainda se poderia discutir a sua mercantilização, mas o gaspacho impede-o. E, afinal, os que rasgam as vestes com estas terroristas, por que não se erguem com as partículas de plástico nos nossos organismos, a voragem da indústria têxtil ou da extracção mineira? Porque será que tanto os incomoda este extremismo, mas calam-se quando veem a riqueza saturada em 1% das pessoas do mundo? Estão uns contra os outros mas, no fundo, estão bem uns para os outros. E quando vai o roto conta o nu, quem acaba a gargalhar é a meia dúzia que teria dinheiro para comprar os Girassóis. Para os colar na sua cabeceira para sempre.

Psicóloga clínica.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt