Clínica da Mudança. A quetamina ao serviço do tratamento de depressões e adições

O potencial de combate àquele que se tornou no flagelo do século XXI é comparado pelos especialistas à mudança dos analgésicos para os antibióticos. The Clinic of Change, em parceria com a Awakn, inaugura-se nesta semana, com o foco no combate à doença mental em todo o seu espetro, através de um método inovador, cujos resultados têm sido amplificados pelo mundo.
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Tratar em vez de gerir a doença mental. É este o ambicioso objetivo da The Clinic of Change, a primeira clínica em Portugal especializada em psicoterapia assistida por quetamina, licenciada pela ERS e pelo Infarmed e a primeira parceira assumida da Awakn na União Europeia. A ambição é tão grande quanto o desafio, num país que é, entre os do espaço europeu, aquele que regista maior incidência de casos de ansiedade, estando no top três da depressão. Um quinto dos portugueses sofre de doença mental, com crescente incidência entre os jovens, e as abordagens mais comuns não têm verdadeiramente poder transformativo.

"A inovação que a The Clinic of Change traz é enorme", explica ao DN Carla Mariz, psicóloga clínica especializada em Psicoterapia e Neuropsicologia. "É um tratamento único porque combina de forma inovadora uma substância que permite a revelação da mente e a psicoterapia, que permite intervir em simultâneo no cérebro e na mente." A substância em causa é um psicotrópico, a quetamina, que a especialista usa há alguns anos na unidade de Depressão Resistente do Hospital Júlio de Matos, onde também trabalha. E que permite ir à raiz do que provoca as alterações mentais, encontrar a ponta do novelo e desenleá-lo para trabalhar o problema, mais do que os seus sintomas e dar ao doente mental ou adicto a capacidade de o ultrapassar criando novos caminhos.

Uma pessoa que sofreu traumas ou perdas acaba por criar barreiras para se defender do sofrimento em situações semelhantes - o cérebro lança-lhe um aviso para a proteger de um sofrimento que pode ter sido insuportável. Isso é comum. A doença mental acontece, explica Carla Mariz, quando estas defesas tomam conta toda a mente da pessoa e condicionam toda a sua vida, consumindo-lhe todas as energias - alguém que não sai de casa, que não se envolve amorosamente, que não se liga, que não consegue lidar com a agressividade ou ultrapassar uma adição. O que este tratamento faz é quebrar esse estado de forma efetiva.

"A quetamina tem uma neurotoxicidade próxima de zero e não provoca habituação nas doses aqui propostas", sublinha a neuropsicóloga, explicando que a substância "funciona como uma espécie de facilitador para ir buscar coisas que já estão completamente enterradas, aprofunda e acelera os processos psicoterapêuticos por vezes em anos". "A quetamina vem alterar profundamente a nossa rede padrão, a forma como nos vemos e processamos experiências, provocando uma disrupção."

A metáfora da neve e do gelo é a imagem mais usada pela Awakn Life Sciences, líder mundial deste tratamento, com clínicas licenciadas em Londres, Oslo, Trondheim, Nova Iorque, Los Angeles e Toronto - e de que a The Clinic of Change é a primeira parceira na UE. A Awakn mantém ainda protocolos de investigação científica nesta área com instituições tão prestigiadas como o Imperial College de Londres, a Universidade de Exeter e o NHS (serviço nacional de saúde britânico).

É a teoria do icebergue, de Freud - na nossa mente é muito mais aquilo que está oculto do que o que é visível à superfície e para chegar ao que está escondido é preciso psicoterapia -, combinada com a ideia de Ben Sessa (referência mundial na psicoterapia assistida por psicadélicos e autor de The Psychedelic Renaissance. De acordo com o pensamento do cofundador da Awakn Clinics e diretor da divisão de medicina psicadélica, se seguirmos por trilhos já criados na neve, chegamos ao destino mas vamos por um caminho já desenhado por outros; mas quando um nevão apaga todos os rastos sobre a encosta, qualquer via se torna possível, não há condicionantes prévias. O que abre um mundo de possibilidades na abordagem da doença mental, não apenas em casos de depressão e ansiedade, mas no burnout, stress pós-traumático, distúrbios alimentares e adições como o alcoolismo (cujos tradicionais tratamentos, mesmo quando eficazes, têm uma taxa de reincidência de 75% ao fim de seis meses).

"É indescritível a diferença que sinto." "Já tinha desistido de ter uma vida normal." "Não estaria aqui se não fosse este tratamento." São alguns dos testemunhos que se lê sobre o método adotado na The Clinic of Change contra aquele que se tornou o flagelo do século XXI, a doença mental. O êxito do processo tem sido descrito em formatos que vão da Economist à Netfilx.

Mas afinal como funciona? Com décadas de utilização na saúde mental, incluindo Portugal, em doses muito reduzidas a quetamina tem propriedades psicadélicas que permitem que atue sobre o sistema nervoso central, provocando um estado de consciência aumentada.

"Ao possibilitar uma excitabilidade, um aumento de conectividade no cérebro - e isto está provado com estudos, ressonâncias magnéticas, exames de imagem... -, dá-se um impacto dramático no seu funcionamento, inclusivamente permitindo uma alteração na conectividade entre algumas zonas do cérebro e assim facilitando a emergência de memórias, de ligações ou de associações que antes não estavam disponíveis", concretiza Carla Mariz.

Não há indução de imagens falsas nem fabricação de memórias, antes são desenterrados episódios bloqueados em virtude de casos traumáticos e que podem estar na origem da doença mental. "É uma disrupção na maneira como a pessoa sente e vê as coisas - e pode ser difícil, como é evidente, porque a pessoa criou o seu modo de ver e de sentir, muitas vezes de uma forma defensiva. É por essa razão que isto só pode acontecer numa situação vigiada, com pessoas com muita formação e experiência de psicoterapia a acompanhar. Não podemos deixar que uma pessoa entre naquele estado de fragilidade total sem essas salvaguardas. E depois tem de haver consequência, a pessoa tem de se sentir segura e acompanhada para encontrar uma nova maneira de se reconfigurar na sua vida."

É tudo isto que a professora Celia Morgan vai abordar com maior profundidade na sua passagem por Portugal, na próxima semana (dias 11 e 12), numa série de conferências abertas sobre o tema da Psicoterapia Assistida por Quetamina - nomeadamente no ISPA - que marcam o lançamento da The Clinic of Change. A responsável pelo departamento de Psicoterapia Assistida por Quetamina na Awakn e líder da área de Psicofarmacologia na Universidade de Exeter será uma das pessoas responsáveis não apenas pela formação especializada em Londres que a Awakn garantiu aos especialistas da The Clinic of Change como pela supervisão clínica permanente dos tratamentos.

Qualquer pessoa, de livre iniciativa ou encaminhada pelo seu médico, pode procurar a The Clinic of Change, mas isso não basta para ser submetido ao tratamento. É preciso que cumpra os rigorosos pressupostos de elegibilidade. A clínica explica que a filtragem se faz em vários passos: há um questionário inicial que faz a primeira avaliação do paciente, depois a consulta com o médico psiquiátrico para atestar eventuais critérios de exclusão (alguns inesperados para leigos, como o glaucoma, em que a substância está contraindicada). Há ainda um par de consultas preparatórias, antes da sessão assistida com quetamina - em que o médico pode ou não estar presente.

No dia do tratamento, a quetamina é injetada no músculo do braço do paciente, como uma vacina, e o seu efeito começa a sentir-se até 5 minutos depois, prolongando-se por 90, sendo o ambiente preparado para que se sinta envolvido e seguro como em casa, ao detalhe das cobertas tecidas com chumbinhos para garantir um aconchego que abraça e da música selecionada para ajudar a transportar o doente na viagem, sem ser perturbado por estímulos exteriores.

No dia seguinte, "para aproveitar a janela das 72 horas que a substância propicia", é submetido a nova sessão de psicoterapia - "é nesta altura que o cérebro está mais plástico, há a tal neuroplasticidade em que a psicoterapia atua com mais eficácia" - para trabalhar os temas. Frequentemente, os pacientes descrevem experiências fora do corpo, há dissociação entre corpo e mente, apurando ou trocando sentidos. "Dá-se uma alteração profunda e dramática da perceção. Nós intervimos o mínimo possível, deixamos que seja a pessoa a apoderar-se, a estabelecer as relações sobre o que aconteceu, o que viu... é ela própria que chega às suas conclusões. O doente é um parceiro altamente ativo", explica Carla Mariz, apontando alguns resultados genéricos imediatos. "O efeito antidepressivo é dramático e muitas vezes relatam uma capacidade de trabalho e de concentração acrescidas." "Este é um psicadélico mais plástico do que outros, como o MDMA, que garante uma experiência positiva. A quetamina tem um efeito antidepressivo, neurológico e psicológico, muito grande, mas se a pessoa não estiver preparada pode ter uma má experiência", descreve ainda.

Os tempos e procedimentos variam consoante a doença mental em causa - uma adição é diferente de uma depressão, o alcoolismo é distinto de um distúrbio alimentar -, mas a mudança é regra, mesmo em casos complexos, como as dependências. Além da redução da vontade de consumir, consegue-se fazer entender os gatilhos para o comportamento e o que está relacionado com a compulsão levando a uma consciencialização que torna menos provável um comportamento que antes da sessão não era controlável, explica a especialista.

Evidentemente, frisa, "isto não quer dizer que a pessoa não precisa de continuar a ser seguida pelo seu psicoterapeuta , mas não estará na mesma condição de antes", diz. "É como passar dos analgésicos a antibióticos." É a maior transformação que aponta ao potencial da psicoterapia assistida com quetamina: a desmedicamentalização.

Um tratamento completo na The Clinic of Change, num edifício tão central quanto discreto da rua Picoas, está orçamentado em 5800 euros, tendo a clínica ativado linhas de crédito para ajudar clientes que precisem de financiamento junto da banca comercial.

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