Claustrofobia 'made in USA'

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William Friedkin (à beira de completar 72 anos) é um caso paradoxal, mas revelador, da história do cinema americano das últimas décadas. Pertence à geração que, ao longo da década de 70, transfigurou todos os valores artísticos e conceitos comerciais de Hollywood; assinou mesmo dois dos mais emblemáticos sucessos desses anos: Os Incorruptíveis Contra a Droga (1971) e O Exorcista (1973). A acumulação de falhanços comerciais (a começar pelo muito interessante O Comboio do Medo, em 1977, remake do clássico O Salário do Medo, de Henri-Georges Clouzot) foi enfraquecendo as condições de produção dos seus filmes, rarefazendo também as suas hipóteses de trabalho.

Com o filme Bug (que nos chega com mais de um ano de atraso em relação à sua estreia mundial, ocorrida na Quinzena dos Realizadores de Cannes/2006), podemos reencontrar os aspectos mais fulgurantes do cinema de Friedkin. Este é, por certo, o seu melhor filme desde Cruising (1980), um drama policial com Al Pacino. Trata-se mesmo de um caso exemplar de transposição de um texto teatral (adaptado pelo próprio autor, Tracy Letts).

Friedkin soube preservar a crescente claustrofobia do original, propondo um verdadeiro mergulho nos fantasmas de um veterano da guerra do Golfo (Michael Shannon), dominado pelo delírio paranóico de uma invasão de insectos (razão do título Bug). A relação dessa personagem com uma mulher à deriva na sua própria história pessoal (Ashley Judd) acaba por se transformar num psicodrama em que cada um é levado a testar as fronteiras da sua identidade.

O filme tem tanto de exuberante como de austero, sugerindo um apocalipse interior que se exprime, afinal, através da crescente instabilidade do cenário. E não deixa de ser bizarro que a violência mais ou menos gráfica de alguns blockbusters seja vista, por vezes, como reflexo simbólico de alguns dramas da sociedade americana... De facto, tudo isso está num filme como Bug, mas os valores dominantes do mercado fazem com que a sua visibilidade seja infinitamente menor que os "homens-aranhas" do Verão do nosso descontentamento.|

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