Ciências forenses «à portuguesa»

A série televisiva <em>CSI </em>tem feito furor mundial e permitiu um novo olhar sobre a Polícia Científica em todo o mundo, inclusive em Portugal, que desde o ano passado conta com uma licenciatura na área. Embora a distância entre a ficção e a realidade seja abismal, o curso de Ciências Forenses e Criminais do Instituto de Ciências Médicas Egas Moniz tem um objectivo: encontrar os Gil Grissom (principal personagem da série, interpretada pelo actor William Petersen) portugueses…<br />
Publicado a
Atualizado a


«A Polícia Judiciária tem duas carreiras: a de investigação criminal, que são os polícias, cuja grande maioria entra com a licenciatura em Direito [hoje em dia qualquer agente tem de ser licenciado]; e a carreira de auxiliar de investigação criminal, que são os técnicos de laboratório, informática, telecomunicações, etc.», esclarece Álvaro Lopes, 59 anos, actual director-geral do Laboratório da Polícia Científica. E foi para a «carreira de auxiliar de investigação criminal» que foi criada a licenciatura em Ciências Forenses e Criminais do Instituto de Ciências Médicas Egas Moniz, uma ideia que surgiu em 2006, como revela Alexandre Quintas, 39 anos, coordenador do curso e professor das cadeiras de Metodologia da Investigação e Bioquímica: «O objectivo era colmatar uma brecha existente nas universidades, apostando na aplicação da ciência à área da justiça. Inicialmente foram feitos alguns contactos, ao nível da polícia e do ministério [o curso teve de ser submetido à aprovação do Ministério da Educação], e a verdade é que não notei qualquer resistência à criação de uma licenciatura como esta, até porque já havia pós-graduações na área.»
A criação do curso durou dois anos e hoje é um sucesso, já que a aceitação por parte dos alunos foi imediata. «Mesmo sem qualquer tipo de publicidade», recorda Alexandre Quintas, «as vagas ficaram completas.»
«Inicialmente tínhamos quarenta vagas, e neste momento temos 42 alunos, devido às vagas especiais. Quanto à média de entrada, na primeira fase terá rondado os 12/13 valores, mas na segunda fase os restantes alunos, além dos trinta iniciais, tiveram já como mínima para entrar 14,5 valores.»
Mariza Narigeto, 19 anos, é um dos 42 alunos do curso de Ciências Forenses e Criminais. A jovem acredita que esta área vai permitir no futuro «melhores saídas, porque o mercado também é novo» e confessa que gostava de trabalhar na Polícia Judiciária, o sonho da maioria dos estudantes da licenciatura. Mas o seu destino poderá ser outro, nota Alexandre Quintas: «Na minha opinião, os alunos do curso não devem ter apenas como objectivo profissional o ingresso na Polícia Judiciária, apesar de este ser o destino que a maioria pretende. No entanto, é preciso não esquecer que, por exemplo as seguradoras, vão precisar cada vez mais de pessoas com formação nesta área, sendo que o mesmo se passa com os escritórios de advogados, na obtenção de determinadas perícias, e até com os bancos, para análise de documentos, uma vez que do curso faz parte um cadeira de documentoscopia. Isto já para não falar em laboratórios…»
Mariza Narigeto (entre sessenta e setenta por cento dos alunos do curso são mulheres) afirma ainda que o curso de Ciências Forenses «está a ser exigente» e obriga a «muito estudo e dedicação». No entanto, a jovem do primeiro ano salienta que um dos principais ensinamentos até ao momento veio com os professores a transmitirem «a consciência da responsabilidade que temos de ter sempre bem presente, uma vez que no futuro podemos contribuir para a condenação de uma pessoa».
Uma exigência que é bem vista por Álvaro Lopes, que salienta que «neste trabalho, qualquer técnico tem de ter – e tem – consciência das repercussões da sua análise. Não só para a pessoa que está envolvida no processo como para todos aqueles que estão à volta. As suas conclusões têm consequências muito graves, o que faz que provoque situações de muito stress! Por outro lado, também é muito grande a satisfação de descobrir a verdade e expormos os factos, tal como existe muita frustração quando não conseguimos solucionar um caso».

Contributo positivo
José Manuel Enes trabalhou durante vinte anos no laboratório de Polícia Científica. Hoje reformado, é um dos professores do curso de Ciências Forenses e Criminais do Instituto de Ciências Médicas Egas Moniz. Sente-se «motivado» com a experiência de ensinar jovens e acredita que a Polícia Judiciária «deve encarar o curso como um contributo positivo, por se tratar de licenciados que já têm uma ideia do sistema de justiça, assim como do universo das ciências forenses». Segundo as suas palavras, «o critério para admissão de técnicos para o laboratório da Polícia Científica tem sido receber licenciados em Farmácia, Biologia, etc. No entanto, e depois de passados vários meses, a maioria ainda não conseguiu ter uma noção do que são as Ciências Forenses! Acredito que os alunos do curso do Egas Moniz vão ter consciência do que isso é, já vão estar dentro desse mundo. Na minha opinião, os formandos do curso de Ciências Forenses acabam por estar em plano de igualdade com os formandos de outras áreas, apesar de estarem melhor preparados».
Álvaro Lopes esclarece que não há nenhum protocolo oficial com a Polícia Judiciária, ao contrário do que sucede com o Instituto de Medicina Legal de Lisboa, mas admite que no futuro isso possa acontecer. E é algo visto com bons olhos por Cristina Soeiro, responsável pelo Gabinete de Psicologia e Selecção da PJ, coordenadora do curso de Psicologia Criminal no Instituto Egas Moniz e também futura professora da licenciatura de Ciências Forenses na cadeira Avaliação Psicológica Forense: «O curso fornece pessoas especializadas para uma área muito técnica porque requer uma percepção muito próxima da área. Há também a destacar o facto de o curso estar a ser feito com muito rigor científico, uma formação científica e ética muito boa.»
Cristina Soeiro confessa que as pessoas com quem falou na PJ estão curiosas sobre o curso, embora não tenha uma opinião formada sobre as possibilidades de os alunos do curso virem a ingressar na Polícia Científica, «já que a minha visão é muito externa, digamos assim. As pessoas que trabalham no laboratório são as mais indicadas para responder à pergunta. Embora possa sempre haver algumas mais antiquadas que não concordem». No entanto, a psicóloga considera que a possibilidade de um aluno ingressar na PJ vai sempre depender das exigências colocadas no próprio concurso de entrada, «até porque as licenciaturas a aceitar são determinadas pelo próprio director nacional da Polícia Judiciária: «Em primeiro lugar, naturalmente que interessam licenciados que tenham algo a ver com a área, embora algumas competências acabem por também ser determinantes, isto porque também depende disso serem bons profissionais.»
Devido às exigências do curso, Álvaro Lopes refere que não foi nada fácil constituir um corpo docente, muito por causa da heterogeneidade da licenciatura: «Temos de ter um corpo docente que transversalmente abarque áreas que vão da medicina à matemática, da farmácia à biologia, química, etc. Ou seja, exige-se um corpo docente pluridisciplinar. Isto além das componentes específicas, como a necessidade de elementos com formação na área criminal, preferencialmente no activo.» O coordenador refere que procurou obter principalmente intercâmbios ao nível do ensino, mas também da instrução e formação de docentes: «A um nível académico procurámos assinar protocolos com universidades com experiência neste campo, como a de Nottingham, Trent, Lincoln, Leicester e Bristol, tudo na área das ciências forenses. Além disso, tivemos ainda contactos mais esporádicos com a Sociedade de Ciências Forenses do Reino Unido, visando a acreditação do curso.»
Razões mais do que suficientes para considerar a licenciatura como ideal para aquilo que foi criada: «Acredito que este curso é extremamente exigente do ponto vista científico. Porque é preciso dar uma formação forte na área das ciências, mas também na área das ciências sociais. Por outro lado, existe também o problema de, cada vez mais, as pessoas que vêm para o ensino superior terem menos maturidade. No entanto, estamos muito confiantes relativamente aos resultados, uma vez que os alunos estão a responder da melhor maneira.»
Confrontados com a realidade, os alunos tomaram consciência de que a série CSI «é como se fosse a capa de um livro, que tem muito pouco que ver com o mundo real», defende Catarina Caldeira, 18 anos. Embora não saiba explicar por que teve vontade de tirar o curso, recorda que «desde pequena a minha mãe dizia que eu queria ser detective».
Teremos um Gil Grissom em versão feminina?
 
 
ENTREVISTA
Álvaro Lopes, 59 anos, ocupa o cargo de director-geral do Laboratório da Polícia Científica desde Março de 2008, embora trabalhe no local há 31 anos. Considerado um dos grandes nomes da investigação em Portugal, avalia com alguma reserva a criação da licenciatura em Ciências Forenses e Criminais do Instituto de Ciências Médicas Egas Moniz, embora admita que «é difícil saber neste momento se o mesmo irá corresponder ou não às exigências da Polícia Judiciária». No total, o laboratório da Polícia Científica tem cerca de 120 pessoas, possuindo uma pequena delegação no Porto. «Os técnicos não têm qualquer formação policial, mas apenas nas respectivas áreas», esclarece.

Como entrou na Polícia Judiciária?
A minha entrada deu-se de uma forma curiosa. Trabalhava na Azambuja, na oficina de uma farmácia, quando soube que a PJ estava à procura de alguém formado em Farmácia. Isto foi numa altura em que aconteceram uma série de assaltos a farmácias e eles precisavam de alguém que identificasse rapidamente as provas recolhidas em cada cena do crime. Concorri e consegui entrar.

Qual o papel do laboratório científico numa investigação?
O papel do laboratório é dar um suporte com base científica em forma de prova. É a colagem da ciência com a justiça. É este o grande âmbito do criminalista. Tem que ver com a insuficiência dos outros mecanismos de prova, a colocação dos vestígios encontrados em cada cena do crime. E que podem ser muito importantes. Trata-se do Princípio de Locart, um princípio das Ciências Forenses que afirma que o criminoso e a vítima deixam sempre vestígios entre si, sendo essa ligação muito importante para apurar a verdade. Trata-se de um princípio fundamental, o da valoração do vestígio, seja sangue, terra, cabelos, etc. É uma análise laboratorial muito virada para a minúcia. É um trabalho de grande rigor porque se trabalha, muitas vezes, com vestígios mínimos. A actividade forense é por isso pluridisciplinar. Todas as ciências têm lugar aqui. E é isso que os laboratórios procuram ter. Temos connosco praticamente todos os ramos da engenharia, física, química, farmácia. Depois, em todas estas áreas, exige-se um espírito de observação muito grande. Esta é, como eu costumo dizer, uma necessidade fundamental!

Como são formados os técnicos de laboratório?
Os técnicos de laboratório, que não são polícias, têm, depois da formação académica, um período de formação específica na Polícia Científica em cada uma das áreas em que vão trabalhar. Geralmente, o primeiro ano é de formação intensiva, no local, sendo que, em seguida, fazem formação na Escola Superior de Polícia, em grupos de trabalho europeus, além de estágios em outros laboratórios, na Europa e nos Estados Unidos. Por exemplo, a formação dos técnicos portugueses nos testes de ADN foi feita no FBI. Em Portugal, estes surgiram com o famoso «caso do estripador», que esventrava prostitutas em Lisboa, caso que nunca foi deslindado, mas que ainda assim levou à criação do laboratório de ADN no nosso país. Além dos técnicos que estão no laboratório, temos as chamadas equipas de crime, que, pertencendo também ao laboratório, são chamadas pelos investigadores, polícias, para irem à cena do crime fazer a recolha de indícios. Concluída essa missão, essas equipas transportam os indícios para o laboratório, onde são feitas as perícias. Naturalmente, estas equipas de cena do crime têm um papel muito importante porque vieram trazer um maior cuidado na recolha. E hoje em dia já temos equipas que só fazem isso!

E como é feita a selecção?
Sempre que é necessário recrutar pessoas, a Polícia Judiciária abre concursos externos. Ainda recentemente tivemos um para a área de balística, em que, para uma vaga, concorreram seiscentos e tal licenciados. E o processo de selecção demora um ou dois anos! Isto demonstra que o processo de entrada na PJ é muito complicado.

O que pensa da licenciatura em Ciências Forenses e Criminais do Instituto de Ciências Médicas Egas Moniz?
É difícil saber se irá corresponder ou não às exigências da PJ. Da experiência que tenho, aponto para os cursos mais básicos e generalistas, especialmente após o Tratado de Bolonha. Trabalhar na Polícia Científica exige uma especialização muito forte. Depois, pode padecer de outro handicap: a falta de pessoas com experiência a trabalhar em laboratórios deste género, como aquele que temos na Polícia Científica. Ou seja, estar um bocadinho afastado da realidade, porque o corpo docente, mesmo com óptimos profissionais nas respectivas áreas, poderá sofrer de falta de experiência nas ciências forenses. Mas a verdade é que ainda não conheço muito bem os currículos e portanto a melhor forma de avaliar o nível dos licenciados que saírem do curso é quando tivermos essas pessoas a trabalhar na PJ.

A série CSI acabou por trazer um novo olhar para esta profissão. Foi benéfico ou, pelo contrário, prejudicial para a Polícia Científica?
As séries correspondem à realidade na perspectiva da análise, da problemática, mas os meios à disposição não são tão sofisticados, embora algumas técnicas existam efectivamente, mesmo não sendo tão exactas ou de resultados tão rápidos. O que verdadeiramente se critica é a rapidez com que os resultados são apurados, algo impossível de acontecer na realidade, além de criar a ilusão de que há meios de resposta para tudo. As séries do género passam uma imagem de que tudo é feito com grande facilidade, o que não é verdade. Depois, há também um outro inconveniente, que é o transmitir a ideia de excesso de tecnologia no avaliar dos casos, como se o papel do técnico não fosse primordial. Mas admito que as mesmas acabam por passar um certo efeito dissuasor junto da criminalidade, que ao ver aquele tipo de séries não deixa de se interrogar se aquilo não poderá também acontecer na vida real. Em resumo, as séries televisivas deram uma maior visibilidade a esta área e valorizaram o trabalho feito pelos elementos da Policia Científica.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt